“O amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica” (J. G. Rosa).

De repente o caso Suzane Richthofen, e a população impactada diante desse horror, se pergunta: Como uma moça rica e bonita foi capaz de tamanha atrocidade? Num país onde 34% do povo se encontra abaixo da linha da pobreza, fica difícil de entender como alguém que tem “tudo”, protagoniza esses crimes. As explicações não dão conta da tragédia, não amenizam a desconfiança de que alguns pais também podem está “dormindo com o inimigo”. Se por um lado, tentam enquadrar o caso na polaridade movediça do normal ou patológico. Porém, não há dados antecedentes que possam classificá-lo como patológico. Afinal, “Suzane sempre foi uma menina tranquila, sociável e boa aluna desde o pré-escolar”(S. Azevedo, Época, n.235, p. 82., 18 nov 2002).

Por outro lado, é bizarro, e desconfortável aceitar como normal tal monstruosidade. Muitos atribuem ao episódio a “falta de limite”, esta que se tornou lugar comum e fácil para justificar todo conflito entre pais e filhos. Mas, não é o bastante para explicar situações extremas que violam padrões éticos consagrados. Não se trata de uma simples agressão a quem interdita uma vontade, mas, a sentença de morte a quem de direito responde legalmente pelo algoz ou agressor. Fatos idênticos pululam nas diversas camadas sociais e regiões do país. No entanto, não têm a mesma repercussão. Não se trata de um episódio único, particular, acidental, mas um fenômeno da atualidade. O que muda, por vezes, é o modus operandi.

No estrangeiro, se mata, em série, anônimos nas ruas, nos colégios, etc.; aqui, talvez devido ao maior estreitamento dos laços afetivos, dependência emocional ou econômica, sacrifica-se o “próprio sangue” em casa. No entender de M. de F. Araújo (Conexões entre capitalismo, indivíduo e individualismo, família e psicologia. In: Perfil - Revista de Psicologia. Assis: UNESP, 1998), a vertente psicologizante toma o indivíduo como um fim em si mesmo, e a ótica burguesa lhe atribui todo êxito e fracasso nessa tendência do capitalismo de destacar problemas sociais para a esfera individual. No que é corroborado por T. Sloan (Ideologia y liberación: aspectos psicosociales. In: Revista Mal-estar e Subjetividade. v. II, n. 1, UNIFOR, 2002), quando diz que “o individualismo ocidental esconde as forças sociais que produzem os transtornos emocionais que são cientificamente catalogados como problemas individuais” (p.9).

Este infortúnio se diferencia dos demais em alguns aspectos: A personagem principal: A menina rica; O palco: A mansão num dos bairros elegantes da Zona sul de São Paulo, reduto da grande mídia; O cenário da morte: O quarto do casal; e o enredo: Que contradiz o estereotipo miséria e falta de instrução, que não são articuladores diretos dos assassinatos. Este parricídio é apenas a ponta do iceberg que flutua na ideologia empírica do homem desta Era. Ou seja, na formação das mentalidades e atitudes pós-modernas. Assim sendo, Suzane não é a única monstra, besta fera que tem de ser extirpada do seio social. Pode parecer paradoxal, mas, de um determinado ângulo, e guardadas as devidas proporções, assim como os pais, ela, de alguma forma, também é vítima desta desumanização. Sintomatologia visível do mal estar social subjacente nas relações e nas conveniências. Portanto, tentar analisar este sinistro como uma questão pessoal, isolada das novas dinâmicas sociais, não tem sustentação.

Estas ocorrências se devem a fatores tais como: Falência das instituições e da ética-moral, etc., que instalam o que chamo de “barbaria estilizada”. Para F. O. de Barros (Do Direito ao Pai. v. 2, Belo Horizonte: Unicentro/DelRey, 2001), o Estado incorpora pseudos valores científicos, ideológicos e políticos, acumula tarefas além das suas funções públicas, e, assim, reduz a autoridade paterna ao biológico. O citado autor conclui que o pai de hoje já não é mais o senhor da ordem, e a carência deste não é “privilégio”(grifo nosso) das famílias desamparadas. Assim, não mais nos surpreende que as mais notáveis violências que são cometidas hoje, não sejam pelos ditos psicóticos, loucos ou anormais. Mas, pelos considerados, até então, normais, perfeitamente ajustados à sociedade. A exemplo da fita de Moebius, normal e patológico se confundem, e atropelam cada vez mais essências mantenedoras de um mínimo de civilidade. Não seria oportuno repensar o conceito de normalidade?

A mente perversa e assassina da universitária Richthofen faz parte de um sistema, no qual se fortalece uma conduta imbuída de interesses materiais e da felicidade instantânea a qualquer preço. Para J. C. Freire (A ética social numa visão mundial. In: Mal-Estar e Subjetividade. UNIFOR: 2002) a sociedade se tornou alheia ao outro, sob o império da indiferença. Esta jovem é produto da sociedade dos excessos de consumo, suas posses não lhe permitiram a experiência das angústias e das frustrações inerentes à maioria dos assalariados que luta para sobreviver. A “princesinha” cresceu num universo que lhe dava a noção de que o dinheiro compra tudo. Seu limiar de tolerância para as agruras da vida, portanto, se fez bastante reduzido. Por isso, como ocorre com grande parte dos jovens de “berço”, se envolveu com droga, ignorou ou destruiu tudo aquilo que a impedia de se ver livre da “falta” ou da pressão psicológica.

Segundo A. Heller (El Hombre Del Renascimento. Barcelona: Península, 1980), o individualismo burguês tem o egoísmo e o cinismo como suas funções mais evidentes. Ou seja, os bastardos, presos pelo irrestrito, perdem o controle diante da impossibilidade; os que sobrevivem em meio às carências, se revoltam com as limitações, e passam a não mais acreditar nas conquistas honestas, se enfezaram das promessas de dias melhores que nunca chegam. Ambos os grupos são cínicos, não acreditam mais no “Pai”, assim, o assassinato real do genitor é consequência da morte simbólica do mesmo no contexto das normas sociais, dos valores, das tradições, etc.

Esses indivíduos estão sempre dispostos a obterem vantagens, pautados na lei do menor esforço e da ignorância ética, são aptos em absurdos para conseguir o que desejam. Fazem parte do que T. Veblen (A teoria das classes ociosas. São Paulo: Nova Cultural, 1987), denomina de “classe ociosa”. Para este autor essa classe se habituou e vive às custas da comunidade industrial, e incorpora hábitos, traços e ideais de um período bárbaro cuja maior proeza é sua ação predatória.

A estudante Suzane não pensou em construir sua vida, junto ao namorado, a partir dos seus esforços. Por que iriam desgastar a juventude no trabalho árduo, enquanto “os coroas” desfrutavam do patrimônio? As sociedades, em particular a brasileira, rejeitam o idoso, na proporção inversa em que enaltecem a mocidade. Nesse sentido, E. Bosi (Memória e sociedade. São Paulo: Ed. Queiroz, 1983), diz que ela impõe sentimentos de desvalorização ao envelhecimento. Isto é, imprime no corpo e na mente juvenil o lema do viver intensamente a vida. Mas não define em quais bases de legitimidade. O ideal ocioso desconhece a renúncia, não suporta a espera, renega às regras sociais e à autoridade. Ou seja, para eles as pessoas são apenas objetos descartáveis ou meios para atender unicamente as suas necessidades. Como ressalta G. Lipovetsky (A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri-SP: Manole, 2005), no mundo de consumo é de sedução em que vivemos, as relações são fins para os quais as pessoas são objetos. Certamente esta primogênita não precisou de habilidades especiais para mobilizar seus comparsas, pois os ociosos estão sempre antenados para as chances de seus ataques vampirescos.

Segundo M. de S. Chauí (Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995), o sujeito ético reflete, problematiza e interpreta o significado dos valores morais. Ou seja, itens estes ausentes no trio Suzane, seu namorado e o irmão deste. O assassinato do casal Richthofen seria uma “parada” lucrativa, todos sairiam ganhando. Uma vez que, não tinham mais princípios morais que pudessem frear seus impulsos, subverteram valores, deturparam conceitos, forjaram e incrementar preconceito para embarcar nas peripécias da satisfação exclusiva da suas vontades. Nesse rol que incluem sexo, droga e rock and roll, ou, simplesmente, a manutenção da adicção. Enfim, os acessos aos prazeres e bens de consumo de maneira intensa, extravagante e, de preferência, com ostentação pública.

Uma vez que os “velhos” tinham cumprido a sua função utilitária e, agora, estavam sendo um obstáculo para as sua intenções, então, nada mais prático, nesta ótica perversa, do que, sem culpa ou constrangimento, “retirá-los do caminho”. Assim, confirmaram a lógica da onipotência, do narcisismo e da auto-suficiência canibalista a que se refere J. Birman (Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos! In: Kehl, M. R. (Org) Função Paterna. Rio de Janeiro: Dumará, 2000). Nesse sentido, S. Hall (A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997), diz que o indivíduo pós-moderno edita ‘identidades’ em conformidade com o contexto. Entendo que essas ‘identidades’, devido à fissura da coerência moral e ética, se tornaram tão elástica que passaram a contribui não somente para as condutas extremas da “classe ociosa”, mas, também, para o hiperindividualismo nas sociedades como um todo.

Os filhos trazem, de alguma maneira, resíduos de frustrações reais ou imaginárias das falhas ou interdições paternas. Embora se faça, não é legitimo responsabilizá-los por todas as dificuldades que por ventura os filhos tenham que lidar. Do contrário, toda pessoa que tem sequela infanto-juvenil decretaria a sentença de morte dos pais. É possível que na educação de Suzane, por causa da descendência germânica, tenha havido rigidez. Mas, não foi o ódio que desencadeou os assassinatos - não foram crimes passionais -, mas uma forma de atuação da ideologia dos ociosos que “tendo sido despojado de sua humanidade e redefinido como verme, o Outro não é mais objeto de avaliação moral” (Z. Bauman. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999: 56).

Na visão de Lipovetsky (op. cit.), estamos no extremo do deserto, atomizado e separado de nós, somos incapazes de ´viver` o Outro. O engenheiro Manfred e a psiquiatra Marísia pretendiam, devido à insegurança urbana e/ou para afastar a filha do Daniel Cravinhos, sair do país. M. Auge (Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas-SP: Papirus, 1994), se refere ao “não-lugar”, ou seja, aquele espaço onde já não existe característica identitária e relacional. A residência Richthofen se tornou para o casal um “não-lugar”, a antecâmara para Suzane e companhia realizarem a façanha macabra.

Tomada pelo desejo de alçar os seus objetivos, a jovem, mesmo sendo aluna de Direito, esqueceu que, se plano vazasse, ela perderia (espera-se), de acordo com a Lei brasileira, sua parte na herança. Segundo Sloan (op. cit., 2002), a contradição básica da sociedade consumista “é que promete a felicidade através de bens materiais, porém destrói as bases da saúde mental e da felicidade nesse mesmo processo de fabricar, e vender ao mercado”(p.9). A Suzane, com certeza, possuía todos os bens materiais, mas, trazia um vazio que seu alpinista social supostamente “preenchia”.

Matar os pais foi à forma mais fácil de assegurar seu parceiro, pelo menos até enquanto o numerário pudesse lhe garantir. Durante a reconstituição do crime, os comparsas “Cristian chorou copiosamente quando teve de encenar os golpes que mataram a psiquiatra Marisia. Daniel chegou a sentir-se mal e pediu que substituíssem o policial que representava Manfred” (Azevedo, op. cit., 2002: 81). Os crimes foram premeditados. Por que essa sensibilidade não aflorou antes dos assassinatos? Os rapazes choraram, talvez, pelos anos que vão perder atrás das grades. Enquanto Suzane, “na maior parte do tempo manteve a frieza que tem assustado os parentes e a polícia desde o enterro do casal Richthofen”(ibid.).

Parecia que havia uma expectativa de que Suzane se mostrasse arrependida ou algo assim. Essa ausência de emoção está coerente, por que não? Se o ápice do seu intento: livrar-se dos pais, fora atingido. Nos momentos cruciais que antecederam a carnificina, ela não hesitou, do contrário, estava empenhada em maquiar a cena dos crimes. Sua frieza faz pensar que realizara uma catarse ódio. Porém, se privou de fazer uma das partes do serviço sujo com as próprias mãos. Denotou está pronta para qualquer resultado, daí o fato de se adaptar bem às condições carcerária: “Acostumou-se rapidamente à rotina de presidiária. Aceita a comida da cadeia, joga baralho com as colegas de cela e até reserva alguns momentos para rezar”(ibid.).

Esse comportamento suscita a ideia de que, como assassina, adquiriu uma espécie de serenidade, como se, estranhamente, tivesse encontrado a paz. A ordem e a ambivalência, no compreender de Bauman (op. cit., 1999), são igualmente produtos da prática moderna que, na melhor das hipóteses, a incerteza produz confusão e desconforto; e, na pior, carrega um senso de perigo. Seu irmão parece também ter exorcizado algum ressentimento. Não é à toa que a perdoou num tempo recorde. Uma prontidão, no mínimo, questionável.
Azevedo (op. cit., 2002) indaga: “Curiosamente (Suzane) já recebeu meia dúzia de cartas de apoio de pessoas que acreditam que a atitude dela pode ser justificada”(p.82). Atualmente, até página no Orkut tem dedicado a ela. Essas pessoas, possivelmente, também são agentes que encarnam monstros, assassinos em potencial. A imprensa informa que, por causa desse namoro indesejável, o pai a batia nas nádegas como se ela fosse criança. Isto é, se esgarçou a autoridade paterna, uma tentativa desesperada de retomar o poder destroçado. Porém, mesmo que a coloquem no lugar de vítima, que isso não sirva de pano de fundo para reduzir sua pena.

As sociedades capitalistas tendem a bloquear os processos de singularização e instauram o processo de individualização. Essas mudanças podem conduzir ao mal-estar de se sentir alheio consigo mesmo, isto porque se deu um descompasso entre as realidades sensível e expressiva (F. Guatarri e S. Rolnik. Micropolítica: Cartografia do desejo. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1993). O pequeno núcleo Richthofen era limítrofe entre dois mundos (centro e periferia) que se ligaram e se tornaram visíveis na noite dos crimes. O casal dormia sob a ilusória proteção do circuito interno de TV. Por ironia, a violência o colocou a salvo dos perigos externos, mas, não da morte que o espreitava invisível no aconchego do lar, e na figura assombrosa de um dos seus. Segundo M.G.C. de Araújo (Subjetividade, crise e narratividade. UNIFOR: 2002), na tentativa de acalmar o desassossego o indivíduo anestesia as emoções, para continuar igual a si mesmo, na intenção de resgatar-se pelo princípio “identitário”. Suzane não tinha ou perdeu o referencial dos afetos positivos para salvaguardar sua identidade, ou os elementos através dos quais se reconhecia: namorado, droga, dinheiro fácil e outros.

A atuação da “classe ociosa” se dá ao extremo, por demais imediatista não suportar a frustração dos seus desejos, assim sendo, não canalizam ou vivenciam no simbólico, simplesmente atuam. Para C. Lasch (Refúgio num mundo sem coração. A família: santuário ou instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991), nesta sociedade de indivíduos, se vê uma tentativa de defesa do “mínimo eu”. No que é reforçado por Freire (op. cit.) de que há um desinvestimento no mundo social para poder garantir a sobrevivência, mas o egocentrado não consegue resolver suas carências no “mercado de felicidade”, e nem permite reconhecer e respeitar o outro enquanto sujeito ético.
Este autor considera que a própria ciência como a Psicologia tem reforçado este modelo societário individualista. Na sua visão a tarefa desta ciência é promover os indivíduos, não só estimular ao cuidado de si, mas também com o outro que nos afigura como ideal que vise superar os limites da cultura narcísica hiperindividualizante. No mundo pós-moderno do individualismo, a solidão e o abandono em que se encontra o homem, fundamenta seu egoísmo em utilitarismo, maquinação de uma existência desumanizada (M. L. de A. Amorim. Educação e modernidade: Uma contribuição às discussões sobre o mal-estar. UNIFOR: 2002). Pelo exposto, não resta ao homem outro recurso que não seja de modificar as opções que faz na sociedade, ou seja, de recuperar nossa humanidade (S. Moscovici. Sociedade contra natureza. Petrópolis: Vozes, 1975), de promover “uma nova arte de viver em sociedade” (F. Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 33).

Finalmente, Suzane afirma: “Quero minha vida de volta” (Veja, n. 14, 12 de abril de 2006), ou seja, como se o período de prisão, alternados com sucessivas saídas, tivesse sido o suficiente para ela se redimir dos homicídios frio e calculista dos próprios pais. Na verdade, uma prova cabal de que não ocorreu nessa moça nenhuma mudança ou compreensão interna dos seus atos, pois continua com o ímpeto perigo de reivindicar a liberdade e a herança que ela mesma precipitou em antecipar.