“Quando o sofrimento não consegue se expressar pelo pranto, ele faz chorar outros órgãos” (Henry Maudsley).

A Vênus de Wilendorf é uma estatua de imenso busto e abdome dilatado, data da era Paleolítica, e que representa a obesidade feminina. De fato, o tipo matrona ocupou espaços nas telas do Renascimento. Mas, depois deste período se instituiu o padrão magérrimo de beleza, exigido não somente nas passarelas, mas também imposto as cidadãs comuns que não sobrevivem à base de alface. Segundo Horkheimer (1976)1, “da natureza à modernidade, o corpo é visado, reeducado”. O modelo atual instigado pela mídia é construído, torturado, costurado e reconstruído nas clínicas e academias. Antinatural, muitas vezes é super valorizada a estética em detrimento da saúde. Neste sentido, Azevedo (apud AZEVEDO, 2002)2 diz que a influência cultural dos padrões de beleza predomina sobre os aspectos éticos e socioeconômicos. Enfim, a ditadura do culto às formas termina por implicar em maiores ônus para a figura feminina. Como salienta Dadinter (2003)3, a sociedade de consumo sexual, em particular para a mulher, o corpo deve ser jovem, performático e excitante. Porém, se por um lado, a busca do ideal de físico perfeito tem ênfase no narcisismo e está pautado na crença de que ele traga sucesso profissional, afetivo e social (MORGAN e AZEVEDO, 2002)2; por outro, a indústria alimentícia instiga hábitos com suas propagandas mirabolantes que estimulam o apetite. Uma vez que o alimento é um catalizador de emoções, isto associado ao estresse da vida moderna, não dar outra: Come-se cada vez mais, e qualidade indesejável. Para Woodman (2002)4, a obesidade é uma síndrome que consiste em sintomas não particulares, mas de um mal-estar geral na cultura ocidental.

Atualmente, a obesidade tornou-se uma epidemia mundial que, em sua imparcialidade, não discrimina ninguém, seja das classes abastardas ou proletárias. Embora o excesso de gordura tenha uma condição multideterminada, no entanto, a maioria dos casos não tem uma causa orgânica que a justifique, isto leva a pensar a obesidade como um Sintoma (LOLI, 2000)5. No entender de Groddeck (apud VOLICH, 2000)6, não existe doença orgânica ou psíquica, pois o corpo e a alma adoecem juntos. A etiologia da obesidade está relacionada à psicodinâmica dos conflitos somatizados devido às reações adaptativas e defensivas débeis ou inadequadas que atingem os mecanismos de defesa do ego (VOLICH6, 2000; SICHEL apud BUXANT, 1988)10, ou seja, fatores psicossociais e emocionais enfraquecem o funcionamento imunológico, bem como o metabolismo do organismo. A primeira vista o gordo pode parecer auto-suficiente, cuja gordura é usada como manobra para disfarçar seus sentimentos ansiogênicos. O transtorno alimentar é, na maioria das vezes, uma expressão de conflito inconsciente. Ou seja, de situações emocionais inacabadas, negadas, de lutos não elaborados que reativam o sofrimento psíquico. A pessoa obesa não constrói um anteparo, “um dique de proteção” contra essas emoções mal resolvidas que acabam por desaguar na compulsão alimentar. Em outras palavras, a fuga por meio da comida é uma tentativa de atenuar as angústias e as frustrações, que assume a função de preencher seu vazio afetivo e de trazer alívio para suas tensões e dificuldades das quais o obeso não consegue resolver e, assim, conquistar um certo estado de paz ou equilíbrio psíquico.

A obesidade pode representar a cristalização da impossibilidade de fazer sarar os doloridos da alma. Assim sendo, resigna-se à entrega, por vezes desenfreada, da comilança. Woodman (2002)4 diz que, “de um jeito ou de outro somos viciados porque nossa cultura patriarcal enfatiza a perfeição. Por isso, uma das maiores dificuldades no trabalho com adictos em comida consiste em ajudá-los a superar a sensação de desespero quando perdem a euforia associada a esse vicio” (passim). O alimento é o primeiro objeto transicional da criança, é ele que faz a ponte mãe-bebê, isto é, não é somente uma fonte de nutrição, pois estabelece e fortalece o vínculo de uma interação prazerosa de investimentos afetivos. Neste sentido, Loli (2000)5 e Woodman (2002)4 consideram que o ato de comer revela a busca de afeto maternal, comer desregradamente tem o poder magnético, na medida que parece prometer a presença da Mãe Amorosa. Ou seja, de uma mãe que nunca chega e sua falta se transforma em mais volume. Em geral, o obeso padece da Alexitimia, termo de origem grega que significa: a = sem; lexis = palavra; thymos = afetividade. Para MacDougall (apud LOLI, 2000)5, ele não consegue expressar em palavras o seu estado afetivo, e não distingue um afeto do outro ou o dispersa em ação para aliviar a excitação afetiva que não suporta. Os desejos estéticos e sexuais estão latentes na pessoa obesa, porém, as limitações físicas, a sofrível qualidade de vida, o risco de morte prematura devam consistir nas suas maiores inquietações, e de seus parentes. No entender de Fasolo e Diniz (2002)2, todos os membros da família afetam e são afetados pela doença, o paciente identificado não é o único que tem problema. Nesta perspectiva, Martins (2002)2 diz que pelo fato da família estar sendo atendida, não significa que seja a origem da doença, ela tem recursos a serem explorados para ajudar a promover saídas mais saudáveis para todos.

Por que também não pensar a obesidade como dobra da revolta inconsciente, uma forma de protesto pelo excesso das demandas sociais que ditam e controlam os modos de vida? Assim, na contra mão do sistema, o indivíduo procura impor suas vontades, soltando as rédeas de uma conduta alimentar “libertária” (aspada porque é seguida de culpa). De acordo com a nossa experiência clínica, embora queira vivenciar a sexualidade plena, o candidato à cirurgia, parece, num primeiro momento, mais disposto a ficar bem consigo. Na obesidade feminina, não se pode perder de vista que, quase sempre, tem viesses afetivos e/ou sexuais, a exemplo do medo de ser tida, pelo sexo oposto, como mero objeto sexual, etc. Neste aspecto, Schelotto (2000: 22)7 afirma que “os homens mesmo na presença das mais românticas palpitações de amor, dificilmente prescindem do aspecto físico”. Enquanto que o homem obeso deixa claro o desejo de recuperar as condições para um melhor desempenho sexual que, em parte, se deve as exigências do seu papel mais ativo no encontro amoroso. Geralmente, os obesos têm dificuldade de encontrar parceria sexual, e, quando isso acontece, reduz à atividade erótica aos limites que o peso e volume corporal impõem. A cirurgia é o primeiro passo na reconquista de si, entretanto, muito mais o cirurgiado precisa fazer na conquista da saúde, longevidade e vida social, o que inclui a disposição de contar, nesse empreendimento, com a ajuda de profissionais nas áreas da psicologia, da nutrição, da plástica e outras.

A cirurgia bariátrica tem se mostrado uma técnica de grande auxilio na condução clínica a grande maioria dos casos de obesidade (FANDIÑO et al., 2004)8. O paciente com transtorno do comer compulsivo evidencia uma história de tratamento anterior em relação ao controle do peso (APPOLINÁRIO, 2002)2. Isto significa dizer que se submeter à cirurgia bariátrica é, em tese, seu último recurso, deixar que o outro (médico) faça o que ele não conseguiu impor a si mesmo: Autocontrole. Mas, o cérebro não registra a redução do seu estômago, e ele não mais dispõe desse recipiente para as descarga e compensação das frustrações, impotências e castrações. E agora, para onde vão as energias agressivas da mastigação e de outros afetos insaciados? Daí a necessidade de acompanhamento psicológico no pré e pós-cirúrgico, para que o paciente compreenda e aceite seus sentimentos, e, em razão disto, maneje com mais assertividade as suas emoções. No entender de Gabbard e Westen (2003)9, na medida em que os sistemas inconscientes guiam a maioria de nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos, em muitos casos, deverão ser o foco primário da ação terapêutica, assim sendo, o papel do analista é ajudar o paciente a se tornar ciente desses padrões inconscientes expressados na sua conduta.

A Avaliação Psicológica Pré-operatória de obeso mórbido é um processo criterioso de fundamental importância que consiste no uso de testes psicológicos atualizados e entrevistas que auxiliam na compreensão e orientação do paciente, objetivando a redução de possíveis complicações pós-operatórias. Para Fandiño et al.,(2004: 48)8, “o paciente no período pós-operatório também deve ser avaliado, a intervalos regulares para o acompanhamento do seu funcionamento posterior”. Na ótica destes autores, a equipe deve estar atenta para ocorrência de crises depressivas que podem aparecer após a cirurgia e que necessita de suporte e tratamento especializados. Na compreensão de Woodman (2002)4, a desprezada gordura é, de fato, a âncora na vida do obeso que ele assume e pode variar em proporção direta á aceitação ou a rejeição com que contempla sua humanidade. Porém, “a identificação não está marcada somente no espírito, mas também no corpo” (CASTETS In:1988: 9)10. Desse modo o luto pelo corpo perdido talvez precise ser enfrentado para que não torne a ocorrer um repentino aumento de peso. Elaborar a perda da então “adaptada carga” e introjetar a aceitação de uma nova silhueta que aos poucos vai sendo delineada. A função do psicólogo é, além de trabalhar no resgate das emoções do paciente, ajudá-lo também na restauração dessa imagem e esquema corporal. Como afirma Greenberg (apud ROMANO e MICANTI Romano In: 1988: 188)2, “mudar significa perder relações e situações precedentes e também perder aspectos do próprio Si”. Finalmente, com bastante propriedade Martins (apud LOLI, 2000: 29)5 diz que “emagrecer e ficar magro é uma condição que exige competência para lidar com a força imposta pela nova imagem corporal adquirida através do tratamento”.

REFERENCIAS

1. HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor, 1976.
2. NUNES, Maria Angélica Antunes et al. Transtornos alimentares e obesidade. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
3. BADINTER, Elizabeth. Fausse Route. Paris: Odile Jacob, 2003.
4. WOODMAN, Marion. O vício da perfeição. São Paulo: Summus, 2002.
5. LOLI, Maria Salete Arenales. Obesidade como sintoma. São Paulo: Vetor, 2000.
6. VOLICH, Rubens Marcelo. Psicossomática. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
7. SCHELOTTO, Gianna. Porque nos sentimos incompreendidos. Lisboa: Presença, 2000.
8. FANDIÑO, Julia, et al. Cirurgia Bariátrica: aspectos clínico-cirúrgicos e psiquiátricos. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. V. 26, n. 1, Jan/Abr, 2004.
9. GABBARD, Glen O e WESTEN, Brew. Repensando a ação terapêutica. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. V. 25, n. 2, Mai/Ago, 2003.
10. HERMANT, G.(Org.). O corpo e sua memória. São Paulo: Manole, 1988.