[Clarice Lispector ]1. NARRADORLaços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector. Oito dos treze contos [Devaneio e embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, Mistério em São Cristóvão e O búfalo] tratam da condição feminina no contexto familiar.Nos quatro contos restantes [Uma galinha, A meno Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
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Laços de Família

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[Clarice Lispector ]

1. NARRADOR

Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector. Oito dos treze contos [Devaneio e embriagues de uma rapariga, Amor, A imitação da Rosa, Os laços de família, Feliz aniversário, Preciosidade, Mistério em São Cristóvão e O búfalo] tratam da condição feminina no contexto familiar.

Nos quatro contos restantes [Uma galinha, A menor mulher do mundo, Começos de uma fortuna e O crime do professor de matemática], a escrita continua presa ao universo familiar, privilegiando outros membros da família.
Todos esses contos são narrados em terceira pessoa, exceto O jantar que é narrado em primeira pessoa.

Nos doze contos em terceira pessoa, o foco narrativo caracteriza-se pela onisciência do narrador, que desvenda a interioridade dos personagens através de um movimento ora de cumplicidade, ora de distanciamento em relação a eles.

A cumplicidade, ou adesão, ocorre por intermédio do discurso indireto livre, da apresentação do fluxo de consciência dos personagens femininos, como veremos no exemplo abaixo.

Ai, palavras, palavras, objetos de quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e marcantes, que quem souber ler lerá. Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia de fazer. Ai, é uma tal coisa que se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertia tanto esta noite! E dizer que fora tão boa! Gritou-lhe seu o restaurante, ela sentada fina à mesa.

Mesa! Gritou-lhe o mundo. Mas ela nem se quer a responder-lhe, a alçar os ombros como um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea. [Devaneio e embriaguez de uma rapariga].

Observe que o narrador contrapõe a terceira [...dizer que se divertira tanto esta noite] à primeira pessoa [Ai, é uma coisa que se me dá que nem bem sei dizer], aproximando-se da personagem sem explicar-lhe os sentimentos, mas expondo-os tal como surgem, confusos, repetitivos, calados...

Este procedimento distingue os textos de Clarice dos romances de análise introspectiva, já que nos de Clarice o olhar de míope se cola aos personagens, desvenda-os com a minúcia, com o apego ao detalhe sensível, que segundo Gilda de Mello e Souza caracterizam o universo feminino, um universo de lembranças ou de espera, como mostra o exemplo transcrito, revelado com luminosa nitidez de contornos.

O feminino é assim femininamente representado, Por empatia e não por esforço racionalizado, embora, nos momentos de distanciamento, o narrador traduza o silêncio deste universo, e também as suas atribuições socialmente definidas.

Ai, que cousa que me dá! penso desesperada. Teria comido demais? ai, que cousa que me dá, minha santa mãe!

Era a tristeza.

Acordo com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito! dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste! censurou-se curiosa e satisfeita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol. [Devaneio e embriagues de uma rapariga]

No segundo parágrafo, o narrador, com a frase: Era a tristeza, verbaliza a indizível sensação da personagem expressa no primeiro parágrafo. No terceiro parágrafo informa a personagem das batatas por descascar, das crianças por cuidar, da roupa por lavar e das peúgas [meias] por cerzir.

As compras, o peixe, o dia atrasado, quer dizer, as obrigações domésticas que precisam ser cumpridas, constituem os elementos que reprimem a embriaguez, fazendo com que a personagem retorne a rotina... Assim, mesmo indo além da percepção confusa da personagem, mesmo traduzindo-a, o narrador onisciente não se afasta do imaginário da personagem mais que suficiente para denunciar a estreiteza de seu universo doméstico, denunciar uma prisão incompatível com a auto descoberta, com o processo de reconhecimento da individualidade, que ocorre ao longo dos enredos em forma de expressão de sentimentos primários, em forma de manifestação de um interesse apaixonado pela existência que momentaneamente transgride as limitações do papel social da mulher, sem transforma-lo, entretanto. É o que veremos, estudando os enredos desta obra.

2. ENREDOS

Vamos organizar o nosso trabalho, aproximando os contos pelo modo como abordam a temática dos laços de família, passando em seguida à apresentação sumária dos enredos, comentando as afinidades entre eles.

Devaneio e embriagues de uma rapariga

Uma mulher portuguesa, com a ausência circunstancial dos filhos, passa a devanear e a sonhar - Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar.

Neste clima chega o marido, a quem não dá importância quando este suspeita de que ela esteja doente. e continua o devaneio, lembrando-se de um jantar a que fora com o marido e o patrão dele. Neste janta, a duplicidade de sua vida com a esposa e com a mulher é revelada no êxtase com que se percebe cortejada pelo patrão do marido, na inveja que lhe provoca uma moça loira de peitos chatos, cintura fina e chapéu - uma mulher que lhe parecia ainda não ter assumido o papel doméstico.

Com a proximidade do retorno dos filhos, a mulher portuguesa [neste conto o narrador adere à personagem inclusive utilizando o Português de Portugal] volta ao devaneio e, para compensa-lo, resolve fazer uma grande faxina na casa.

Amor

Ana, uma mulher casada e com filhos, bem sucedida na vida familiar, está no bonde voltando das compras quando vê, numa parada, um cego mascando chicletes. Esta visão a desestabiliza emocionalmente: ela sente ódio, piedade, prazer, bondade, uma doce náusea da qual costuma fugir mergulhando no dia a dia, em especial quando cai à tarde e não tem o que fazer, e se refugia nos serviços domésticos.

Sua bolsa de compras cai, alguns ovos quebram, e ela desce no ponto errado. Entra no Jardim Botânico, observando em êxtase a matéria bruta da vida; as árvores, as flores, a terra. O delírio ao qual se entrega, misto de repulsa e fascínio, sedução, é bruscamente cortado pela lembrança dos filhos, do jantar que faria aos irmãos com a sua família.

Ela retorna a casa, o jantar obtém sucesso, e a estranheza do dia se esfumaça ao deitar-se para dormir, conduzida pelo marido.

Uma galinha

Num domingo em família, a galinha seria morta para o almoço foge e, após muita perseguição, é recuperada pelo chefe da família. De susto, bota um ovo, o que faz com que seja preservada e transformada em rainha da casa até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

A imitação da rosa

Laura, esposa de Armando, de volta ao lar um período de internamento numa clínica psiquiátrica, espera pelo marido para irem jantar, acompanhados por Carlota, amiga antiga, e pelo marido desta.

Ao longo desta espera, obsessivamente procura se prender à sua imperfeição singela de mulher afeita à rotina, de coxas baixas e grossas, sem filhos, pouco original e meio chata, desinteressante. Ao mesmo tempo a perfeição de umas rosas que comprara na feira da manhã e vai seduzindo como se fosse uma das tentações de Cristo. No colégio, lera A imitação de Cristo e sentira, sem entender a obra, que quem o imitasse estaria perdido. Cristo era a pior tentação.

Embora tentasse se defender do abismo ao qual novamente estava se entregando - o abismo da perfeição de Cristo e das rosas, cuja beleza a transtorna - embora mandasse levar as rosas para Carlota, a amiga autoritária e prática, que vagamente a despreza, Laura volta ao estado de 'transe' que fez com que fosse internada. Quando Armando chega encontra a mulher num pedido de perdão misturado `a altivez de uma solidão já quase perfeita... alerta e tranquila como um trem. Que já partira.

Feliz aniversário

A velha Anita, no dia em que completa 89 anos, é homenageada com uma festa, organizada pela filha com quem mora: Zilda. Desde a chegada dos convidados, vamos percebendo a mediocridade, a rivalidade e o egoísmo que fazem das noras, dos genros e dos filhos ratos se acotovelando em torno da aniversariante, que fica horrorizada com que semeara, com a vida que falhara. Ela, então, que se mantinha muda e impotente, num determinado momento cospe no chão, pede vinho e acaba por xingar a todos, com exceção da nora Cordélia [mãe do único neto que realmente estima], infeliz, mas ainda com uma chance de amar, talvez a ultima vez. A ela a velha Anita 'diz' em silêncio: É preciso que se saiba. Que a vida é curta.

A festa termina, todos se vão, e a velha medita sobre o jantar [teria sido substituído pela festa?]. O narrador então nos revela que a morte era o seu mistério.

A menor mulher do mundo

Pequena-flor é o nome que um explorador francês dá à menor mulher, de 45 centímetros, escura e peluda como um macaco, descoberta nas profundezas da África. Grávida, ela se apaixona pelo explorador, que se perturba como só um grande homem se perturba, saindo nos jornais e incomodando as famílias: uma mulher se lembra da história de uma antiga cozinheira, que no orfanato brincara com uma criança morta, outros têm pena, repulsa ou indiferença.

O explorador não entende que Pequena-flor o ame e também a sua bota,pois a umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis - que se goste de mim e não do dinheiro - e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar de cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha.

O jantar

Único conto narrado em primeira pessoa, nele é relatado o jantar de um homem velho por alguém que de outra mesa do restaurante o observa ora comendo tranquilo, ora desesperado apertando as têmporas com as mãos. O observador através desta imagem mergulha em suas próprias contradições [o que percebemos pelo discurso indireto livre, também presente neste conto], dolorosamente identificando-se com o velho, tomado pelo êxtase da náusea. Quando o velho se retira do restaurante, o observador sente-se um homem ainda: Não sou esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.

Preciosidade

Uma adolescente de quinze anos guardava-se da vida com seus sapatos, de ruídos feio como ela, temendo que a olhassem e assim desvendassem o medo secreto que tinha de crescer, de se tornar mulher. A preciosidade deste medo era seu maior segredo. No ritual cotidiano de madrugar e pegar o bonde e um ônibus para chegar à escola, um dia dois rapazes a seguem no trajeto a pé. Então, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação tocam-na tão inesperadamente que ela percebe ser seu medo menor que o deles. Recompõe-se, recolhe do chão os livros e o caderno aberto, onde viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua, chega atrasada à escola e, de noite, exige da família sapatos novos, deixando, sem saber Poe que processo, de ser preciosa. A esta frase se sucede a seguinte explicação do narrador:

Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo.

Os laços de família

Catarina leva a mãe à rodoviária, após duas semanas de visita desta à sua família, durante a qual mal faltara com o genro - Antônio - e estraga o neto, magro e nervoso, com guloseimas. No táxi, em meio a frases rotineiras e convencionais, um solavanco fisicamente aproxima mãe e filha em uma intimidade de corpo há muito esquecida.

Despedem-se convencionalmente sem que, entretanto, a vertigem daquela revelação de um afeto reprimido se apague. Catarina volta ao lar, o filho a chama de mãe como nunca o fizera ou talvez como ela nunca percebera, e ambos saem para passeio.

Antônio, desconfiado daquela súbita cumplicidade entre a mulher e o filho, fica na expectativa de que retornem para que o sábado - dia dele, mas com o testemunho da mulher, de que não pode prescindir - volte ao normal, indo o casal ao cinema depois do jantar.

Começos de uma fortuna

Numa manhã daquelas que parecem suspensas no ar, Artur, o filho adolescente, reencontra a mãe e o pai no café durante o qual conversam amenidades, cada um representando seu papel. Neste episódio, o narrador enfatiza a carência afetiva de Artur, que de forma inconsciente procura compensá-la, pensando fixamente em dinheiro.

Assim começa sua 'fortuna', que na verdade é a manifestação de sua profunda insegurança: o medo de pagar a Glorinha [uma amiga] a entrada de cinema, temendo ser explorado pela menina. Primeiro ele a acusa interiormente pelas 'malícias' que poderia ocorrer, depois não ocorrendo tais malícias, ele a acusa do mesmo jeito, agora pela 'gratuidade' da diversão de Glorinha, contra que se revolta por lhe ter pago a entrada de cinema.

No final do conto, Artur está de novo na mesa da refeição, falando de dinheiro com o pai... o dinheiro e o medo da exploração escondem, assim, a carência e a insegurança de um menino solitário.

Mistério em São Cristóvão

Numa noite de maio, uma família que vive raro período de paz e de entendimento vai dormir. De madrugada, três mascarados - um gato, um touro, um cavalheiro antigo, com máscara de demônio - que iam a uma festa carnavalesca param para roubar jacintos no jardim de casa da família adormecida. A menina magra, de dezenove anos, acorda e grita, os mascarados fogem, e o equilíbrio difícil da família se desfaz: a avó de novo pronta a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis, toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um jantar. O que sucederia talvez noutra noite de maio.

O crime do professor de matemática

Enquanto enterra um cão morto encontrado na rua, no alto da colina de uma pequena cidade, o professor de matemática, um senhor de meia idade míope e frio, relembra sem nenhuma confusão, sem nenhum fio solto, um outro cão que fora seu e que o fazia sentir-se um criminoso. Este cão lhe ensinava a amar a sua imagem, isto é, com uma liberdade e uma aceitação tão integral, que o incomodavam.

Sendo apenas um cão, José [o nome que lhe dera] o obrigava a ser um homem, a exercer uma integridade de amor verdadeiro, que nada cede e nada exige, o que o professor não suportara. Abandonou-o, então, com a conivência indiferente da família - esse fora seu crime.

Mas jamais alguém o descobriria, como também não descobririam que o cachorro constituía a possibilidade constante de um crime, uma transgressão - o aprendizado do amor integral e verdadeiro - na vida do professor.

Enquanto enterra o cão anônimo, o professor friamente raciocina que assim está pagando um tributo ao cão que abandonou. Entretanto, a lembrança dele transforma-se em saudade, a saudade em diálogo comovido com o companheiro ausente, o diálogo em reconhecimento de que o crime não tem remissão.

Ele, então, consciente de que procurava punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime, desenterra o cão anônimo. Assim renova o seu crime para sempre e desce as escarpas em direção ao seio da família.

O búfalo

Uma mulher rejeitada pelo homem que ama vai ao Jardim Zoológico para aprender o ódio entre os bichos, mas consegue encontrar amor. A girafa, o hipopótamo, os macacos, o camelo, e até a vertigem na montanha russa ensinam-lhe mais e mais amor. E ela, que precisava conhecer o ódio para não morrer de amor, que se perdoasse mais uma vez estaria perdida, que só sabia resignar-se, suportar e pedir perdão, finalmente defronta-se com um búfalo, olha nos seus olhos e encontra o ódio que procurava. Seu corpo tomba no chão e antes de baquear macio, em tão lenta vertigem, a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.

3. COMENTÁRIO GERAL

A interrupção da rotina e a volta a ela podem ser analisadas como o mais forte elemento organizador dos contos de Laços de família, nos quais os personagens pertence ao universo familiar, sendo em sua maioria femininos.

Em Devaneio e embriagues de uma rapariga e Amor e Os laços de família a condição social da mulher, a dona-de-casa, parece colocá-la numa 'segurança' que represa, ou reprime, as manifestações de sua subjetividade.

Bloqueada em termos de iniciativa e decisões pela autoridade masculina, cabe à mulher o mundo restrito, porém trabalhoso, do lar. Ela então se entrega aos afazeres do cotidiano - a marido, os filhos, a casa - num esforço de organização que se torna obsessivo na exata proporção em que desse desempenho depende o seu equilíbrio interior. Ou melhor: a faina doméstica transforma-se no único horizonte preenchedor de sua carência de horizontes, da redução de sua humanidade circunscrita um único espaço, pequeno e portanto repetitivo, monótono, alienador.

Desta alienação nascem os desejos insatisfeitos, as sensações de 'vazio' que não são dizíveis e nem mesmo pensáveis por ausência de referencias externas, de diálogos com outros mundos, que lhe permitam relativizar aquele no qual está mergulhada, enclausurada.

Assim, os devaneios, os momentos de êxtase, ocorrem 'perigosamente' quando os filhos saem [Devaneio e embriagues de uma rapariga], em certa hora do dia em que não há o que fazer [Amor], ou quando algo extraordinário irrompe perturbando a normalidade [Os laços de família].

Nos três casos, tais momentos explodem, invadem a rotina, sem que as personagens compreendam-lhe o sentido, mas provocando nelas um vôo, uma transcendência que nega toda a sua vida e que por isso constitui uma transgressão. Radical por pertencer ao domínio das sensações, das emoções, que a deflagram, a transgressão também é momentânea, fugas, uma vez que a chamada à realidade inevitavelmente ocorre: o jantar por fazer, os filhos por cuidar, a casa, o marido, etc.

Clarice Lispector capta, traduz e desvenda o vertiginoso relance destes momentos, mostrando as contradições entre náuseas, nojo, repulsa, e fascínio, luminosidade, paixão, de que são feitos.

Quando Ana vê o cego mascando chicle [Amor] é orgânica e incontrolável a piedade que a toma. Uma piedade que repudia a falta de piedade em que vive no dia a dia, como se não houvesse cegos que mascam chicletes, como se houvesse a matéria bruta da vida a desafiar a estreiteza de nossa humanidade. No Jardim Botânico, aonde fora guiada pelo cego [sempre sem saber], ela então se entrega ao delírio e à vertigem das sensações que afloram e que são impossíveis de conter. Veste conto, o cego constitui o mediador entre o cotidiano e a aventura da descoberta, o revelador da intimidade latente de seus sentimentos embotados.

Em Laços de família, o mesmo acontece através de um abraço imprevisto, no qual Catarina percebe o quanto de distancia e silêncio a separa de sua mãe. Em Devaneio e embriagues, a rapariga portuguesa por um instante de mergulho em si própria recupera uma sensualidade com a qual, entretanto, não sabe o que fazer.
A volta à rotina renega os vertiginosos relances, substitui os sentimentos fortes - a náusea doce de ir além e de ao mesmo tempo precisa retornar - pela contenção costumeira, pela retomada do fio, que são as obrigações domésticas.

Em A imitação da rosa, temos a mesma história pelo avesso: a loucura de Laura é a sua perfeição, a sua imitação de Cristo, que a isola do marido e da mediocridade em que se esforça inutilmente por se manter. Não cabe na rainha a esposa, parecem gritar as flores silvestres que, como o cego mascando chicletes e Amor, corrompe a personagem, e despeito de sua vontade.

Em A menor mulher do mundo e Uma galinha, dois seres primários, pertencem à natureza, incompreensíveis em sua estupidez [a galinha] ou em sua estranheza [Pequena-flor], duas manifestações da matéria bruta da vida quebram a cadeira do cotidiano alienante das pessoas, que no entanto a ele retornam. Como ocorre com a velha Anita, de Feliz aniversário, que pensa no jantar após um momento de reconhecimento de que a vida falhara, de que eram podres as sementes que semeara.

O isolamento, a falta de comunicação entre as pessoas, cada uma voltada para o próprio papel em uma representação em que não há diálogo, mas monólogos superpostos, faz do ambiente familiar uma espécie de farsa, em que o equilíbrio é frágil e precário, como vemos em Mistério em São Cristóvão, e que as descobertas e carências individuais passam desapercebidas, como sugerem Começos de uma fortuna e Preciosidade.

Neste dois contos, os filhos adolescentes constituem os protagonistas, ambos distantes dos pais, solitários, e em busca do selvagem coração da vida, seja pelo medo rompido em Preciosidade, seja pela compensação da carência através do dinheiro em Começos de uma fortuna.

A menina de 15 anos de Preciosidade é a promessa do futuro que não se cumpre em Feliz Aniversário, em que no entanto a velha Anita com os punhos cerrados e a monumental decadência de seus descendentes diante de si, transmite uma sabedoria duramente conquistada a alguém com quem não tem laços de sangue, mas que também pertence à condição feminina. É preciso que saiba. É preciso que se saiba.

Que a vida é curta. Que a vida é curta....

A necessidade deste aprendizado parece estar presente em O búfalo, onde a mulher rejeitada busca suplantar a passividade de sua condição, chegando à vertigem do ódio, cujo poder esmagador a faz desmaiar sem que possamos saber se a contemplação do que procurava consegue libertá-la da obrigação de amar e de perdoar.

Enquanto o destino de amar, de perdoar e de se resignar aprisiona e silencia a mulher, o destino do homem de não compreendê-la se repete exaustivamente nos contos, sendo tematizado o seu quinhão de esmagamento interior, para preservar os laços de família. Em O crime do professor de matemática, a frieza do raciocínio do professor, sepultado com o cão anônimo o próprio anonimato, a própria desumanização, contrapõe-se ao amor com que se lembra do verdadeiro cão, o que o força a desenterrar, através do cão, o crime de não ter conseguido amar, e reconhecer que não tem remissão este crime. Isto não o impede de retornar, como as mulheres, à comodidade familiar...

Finalmente, em O jantar, há um observador da vida arruinada, fracassada [como a da velha Anita], que empurra o prato, rejeita a carne e seu sangue, isto é, ainda se sente um homem, um projeto de esperança, cuja realização fica em aberto, assim como em aberto fica para a adolescente de Preciosidade, para a nora de Feliz aniversário, para a mulher desmaiada de O búfalo...

Estudamos os personagens, vamos nos aprofundar mais um pouco no desvendamento do universo familiar, que nauseia e fascina, em seus vertiginosos relances, captados pela sensibilidade de uma escritora que tanto quanto os seus personagens possuem o segredo do indizível: mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmague com palavras às entrelinhas.

4. PERSONAGENS

Não tem pessoas que cosem para fora? Eu coso para dentro... Assim respondia Clarisse, quando perguntavam como escrevia. Assim ela constrói seus personagens, aparentemente descoloridos e desinteressantes, nas funções que desempenham no universo familiar: a dona-de-casa, o marido, os filhos, a avó, o genro, a nora.

Entretanto, à medida que desvenda a interioridade destes personagens, sem perscrutá-los intelectualmente mas olhando-os, tocando-os, aproximando-se deles, dando voz ao seu silêncio, à sua solidão, Clarice nos ensina o segredo do indizível.

Com ela, pela forma como faz das linhas pretextos de percepção das entrelinhas, aprendemos a paixão da descoberta do humano, do substrato inquieto da vida que se esconde atrás dos atores, no vão entre o silêncio e linguagem, nos bastidores das representações de cenas aparentemente banais.

Começando e terminando com a rotina, com aquilo que o hábito lambe até dar-lhe uma aparência de suavidade - a expressão é de Júlio Cortazar [histórias de Cronópios e de famas] - estes contos interessam, prendem, fascinam quando a ação é estrangulada pela emoção e, neste momento perplexo, passageiro como se não tivesse existido, exatamente neste momento, defrontamo-nos com a matéria bruta da vida: seu gosto, seu cheiro, sua textura, a indomável violência da subjetividade represada.

Ao explodirem, ao transcenderem a si próprias, ao perderem os contornos que a repetição tornou pálidos, descoloridos, as mulheres destes contos revelam que da maternidade de seu universo, tradicionalmente de lembrança e de espera, surge o saber de quem não sabe, o dizer de quem não diz: este saber e este dizer talvez possam ser expressos pela pulsação. Pulsam os sentimentos, pulsam as emoções, as sensações nos momentos de exceção, de suspensão, em que é como se apalpássemos os corações batendo, desautomatizada e livre, indomável, por um milésimo de segundo sem espaço, sem tempo, sem coerções... Quando os contos terminam, e fechamos o livro, o que aprendemos é exatamente o que não conseguimos explicar. É a percepção de um ritmo interior que nos move subterraneamente, que por detrás do que aparentamos, constitui o que de mais precioso existe em nossa humanidade.

Assim, os personagens de Clarice são o avesso dos papéis, das funções que desempenham nos laços de família. E no entanto retornam a estes papéis, como nós, leitores, retornamos da leitura dos contos: preocupados com o que fazer, ameaçados pela iluminada fecundidade do instante que vivemos.

5. TEMPO / ESPAÇO

Em termos de tempo e espaço, repete-se o comentário que fizemos sobre o enredo e os personagens. A divisão entre a interioridade e exterioridade, entre a infinitude do universo subjetivo e a limitação do universo exterior, constitui o contraponto em que trabalha Clarice, privilegiando o espaço externo que surge repentinamente, a qualquer pretexto, para que o personagem mergulhe no verdadeiro espaço destacado na obra: o si mesmo, incompreendido e subterrâneo.

Outra divisão que nos interessa para compreendermos a obra é aquela que se dá entre o tempo cronológico e o tempo psicológico. Cronologicamente, a mesmice da rotina impera nos contos.

Entretanto, o fragmento de tempo em que esta rotina é suspensa para que aconteça a explosão dos sentimentos, das sensações e das emoções dos personagens transforma-se num infinito de duração não mensurável em quantidade de tempo, que é mínima, mas em intensidade, como os domingos, as manhãs suspensos no ar...Ou como a primavera no conto O Búfalo, representando a dificuldade sentida pela mulher de odiar o homem que a rejeitara. Mas era primavera, a frase que inicia o conto, começa com uma conjunção adversativa [mas] cujo sentido só compreendemos depois de ler o texto: a primavera sugerindo o amor e a mulher suplicando e precisando do ódio.

6. LINGUAGEM

O mundo de Clarice é vivo e sensual. Erotizado, ele pulsa de corpo inteiro. Mundo carregado de cheiros, frutos podre e adocicados, carne crua e sangrenta, cheiro de cal, de maresia, de guardados, de estrebaria, de vacas, de leite e sangue. Carregado de formas gelatinosas e macilentas, de lama, de pus. De musicalidade que ecoa e vibra suas dissonância ao som agudo da flauta e do violino plangente. De telas e mais telas que pretendem alcançar o branco sobre o branco.

A convocação de todos esses elementos e outros mais são recursos tidos como necessários para captar a vida, a existência. Não a existência abstrata, exemplar, mas aquela que se entranha na banalidade do cotidiano. E isso Clarice consegue captar, de modo magistral, nos contos...

Quem nos conta todas essas histórias é Clarice Lispector que se conta através delas...

O fracasso é também o estigma que a escritora carrega. Entre a realidade, sua matéria-prima, e a linguagem - o modo como vai buscá-la e não se encontra - o seu esforço humano e apaixonado é buscar e voltar com as mãos vazias. Com o indizível. 'O indizível só me poderá ser dado com o fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela conseguiu.'

Enquanto nomeia e designa, a palavra faz surgir, à sua sombra, a multiplicidade do que não tem nome. Ela trai no que alcança dizer e é fiel quando silencia. Para contar não os fatos mas seus ecos e 'sussurros' não os personagens, mas suas vibrações e intimidades, não um caminho mas instantes privilegiados e fugidos, é preciso lapidar as estrelinhas, golpear a linha e aumentar o cerco do silêncio que rodeia a palavra.

Dilacerada, a linguagem mapeia o dilaceramento dos personagens, sua dispersão.

Dispersa, mutilada, a linguagem espelha o vazio do sujeito à procura da própria imagem de totalidade perdida no mundo em que vive.

Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu dizer, situa-se o texto de Clarice.