[José de Alencar ]A Pata da Gazela , considerada "A Cinderela da literatura brasileira" narra em terceira pessoa, um romance vivido na alta roda carioca, repetindo a velha fórmula do triângulo amoroso.Amélia, uma mulher bela e rica, vai ser disputada por Horácio e Leopoldo.Horácio, homem elegante não só no traje como em no trato pessoal, poderia ser considerado um dos prínc Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
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A Pata da Gazela

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[José de Alencar ]

A Pata da Gazela , considerada "A Cinderela da literatura brasileira" narra em terceira pessoa, um romance vivido na alta roda carioca, repetindo a velha fórmula do triângulo amoroso.

Amélia, uma mulher bela e rica, vai ser disputada por Horácio e Leopoldo.

Horácio, homem elegante não só no traje como em no trato pessoal, poderia ser considerado um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor.

Cansado de suas aventuras amorosas, apaixona-se e sai à procura de uma misteriosa mulher portadora de um minúsculo pezinho e dona da delicada botina que encontrou na rua, deixada cair por um lacaio que passara correndo por ele.

Leopoldo, pouco favorecido e respeitado de beleza, simples no vestir, trajava luto pesado não só nas roupas negras como na cor das faces e na mágoa que lhe escurecia a fonte, pela perda da irmã.

Virgem de amores femininos, apaixona-se pela dona do sorriso que viu em uma carruagem.

Horário, conhecedor dos corações das mulheres, acreditava que elas eram uma obra suprema. O amor não tinha novidades nem segredos para ele. Sofria imaginando se algum sapateiro com suas mãos aleijadas tomavam medidas de seu adorado pezinho.

Assim corria espetáculos e bailes, tentando descobrir por baixo da orla do vestido o ignoto deus de sua adoração.

Num teatro encontra-se Amélia com sua prima Laura. Leopoldo decidido a conservar o luto, estava presente e pede informações sobre as moças a Horácio, pois sua paixão continuava intensa e ardente.
Leopoldo, encontra as moças subindo na carruagem e apressa o passo. Fica imóvel, seus olhos viram um aleijão, um pé disforme.

Amélia após vários encontros com Horácio, na casa de D. Clementina que gosta de reunir moças, formando pares para dançar, foi pedida em casamento. Amélia pede um prazo de 15 dias antes de dar a resposta.

Leopoldo soube da notícia com mágoa mas sem se perturbar, amaria unicamente sua alma, essa ninguém poderia roubar, porque Deus a teria feito para ele.

Findo o prazo, Amélia tinha ares de quem sucumbia ao compromisso contraído. Num baile escuta Horácio falando a Leopoldo que não sentira antes a menor comoção ao ver Amélia. Mas quando soube que a ela pertencia o tesouro, a botina, adorou-a.

Horácio conta-lhe sua versão, o vulto confuso, o defeito que ela tinha: um pé aleijado.

Amélia sai do baile e convida Horácio para ir a sua casa. O moço encontra-a bordando, e na conversa ela esconde as lágrimas. Lançando um olhar para a moça, viu alguma coisa que o sobressaltou. A fimbria do vestido suspensa descobria o pé da moça, o moço estremeceu: era o aleijão. A moça foge da sala.

Sentindo a necessidade de sair da posição difícil em que se achava, dirigiu-se à casa de Amélia, procurou manter um clima de guerra, pois ficou sabendo que a moça encontrava-se com o Leopoldo na casa de D. Clementina. O rompimento era infalível, compreendera que tudo acabara.

Horácio aproxima-se de Laura achando que o misterioso pezinho lhe pertencia. Aproxima-se e frequenta a casa da família e lhe faz crer que se aproximou de Amélia para vê-la.
Amélia vai às compras com sua mãe e encontra o Leão, e disfarçadamente deixa à mostra pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merinó de cor cinza. Horácio fica pasmo.

Amélia e Laura eram primas e amigas. Laura usava sempre roupas compridas, disfarçando os pés disformes. Amélia tinha dois pezinhos de fada, os dedos pareciam botões de roca. E para poupar a prima do constrangimento, Amélia encomendava os sapatos na rua onde Horácio encontrou a botina perdida.

Foi quando decidiu manter Horácio à prova, colocando a botina monstruosa de sua prima. Excitou o horror em Horácio.

Aproxima-se de Leopoldo, convidando-o a frequentar a sua casa, e conta-lhe que escutou a sua conversa naquela noite do baile.

Horácio descobre seu engano e resolve reconquistar Amélia. Encontra com Leopoldo, um cavalheiro mudado, boas maneiras com sóbria elegância, e sabe que só o amor traz estas transformações.

Não desiste, e indo a sua casa presencia o enlace de Amélia e Leopoldo, que o fazem sem prévia antecipação.

Leopoldo casa-se sem saber que a noiva não era um aleijão e esta prepara-lhe uma surpresa, exibindo seus dois pezinhos divinos, de onde apareciam as unhas rosadas.
Termina o romance com Horácio falando:
O leão deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazela.

O romance mantém um certo bom amor, fazendo uma sátira ao dom-juanismo romântico. A metáfora do leão e da gazela compõe uma desmistificação da retórica romântica.
Mas, é mantido seu romantismo falando das núpcias sigilosas e dos sorrisos da mulher amada como do dote de cem apólices e dos pezinhos de Cinderela.

Ao menos nos romances tradicionais, encontramos sempre uma história [sucessão encadeada de episódios] que nos é contada pelo narrador, ou seja, pela pessoa que o autor encarrega do relato. Esse narrador pode aparecer em primeira pessoa [quando, de uma forma ou de outra, participa do enredo], ou em terceira, como ocorre em A Pata da Gazela, romance de José de Alencar. Nesta obra, o narrador é uma presença constante, descrevendo-nos o ambiente onde a ação se passa, apresentando-nos os personagens cujas ideias e sentimentos nos desnuda, introduzindo-nos enfim, como leitores, no universo representado pelo romance. Tais intromissões do narrador na obra garantem a esta um caráter familiar e moralista, principalmente se observarmos que o narrador se aproveita disto para teorizar a respeito da natureza dos sentimentos humanos, para criticar costumes da época, para pormenorizar hábitos dos salões, cariocas do século passado, etc.

Outra dimensão de um romance [como, aliás, de qualquer obra de arte] é sua historicidade, isto é, seu caráter de objeto produzido num determinado momento histórico, destinado a ser consumido por um público de características específicas [e, no caso dos leitores de Alencar, com exigências diferentes das do público de hoje] e fruto de uma concepção de literatura muito peculiar. No caso de A Pata da Gazela, sua publicação em 1870 imerge-o em plena moda romântica, quando o romance visava ao entretenimento e para isso envolvia o leitor em peripécias sucessivas: fazia-o presenciar cenas patéticas de paixões não correspondidas, fazia-o comover-se com desencontros lacrimosos, tudo isso para possibilitar ao leitor identificar-se aos personagens e assim escapar, por instantes, à rotina do cotidiano burguês.

É justamente o que ocorre com este romance, em que Alencar fornece ao público os ingredientes que este estava habituado a consumir e com os quais costumava se identificar: o meio social é a alta roda carioca, em que as mulheres são belas, ricas e apaixonadas; os homens galantes dançam quadrilhas e frequentam a ópera. É, portanto, na alta burguesia brasileira do século passado que Alencar constrói o romance que, em si, repete a velha fórmula do triângulo amoroso. Amélia, a heroína que preenche todas as qualidades acima citadas, é disputada por dois apaixonados: Horácio e Leopoldo, que representam os dois polos do mundo romântico: Horácio é o "leão", rei dos salões, o homem preocupado com a própria elegância, volúvel destroçador de corações femininos. Entendiado com a vida, uma vez que o número e a diversidade das conquistas amorosas o desinteressaram de novas aventuras galantes, apaixona-se pela misteriosa portadora de um mimoso pezinho, tão minúsculo como a botina que ele encontrou na rua. Leopoldo, sonhador, pálido e macilento, descuidado no trajar, virgem de amores femininos e magoado pela recente morte da irmã, apaixona-se à primeira vista pela dona do sorriso entrevisto numa carruagem parada na Rua da Quitanda.

O romance ganha suspense, pois o narrador oculta a identidade da dona da botina, retarda o final da história e complica seu desenlace, pois a dona da botina e do sorriso são a mesma pessoa, Amélia, que acaba por preferir Leopoldo, cujo amor é sincero e desinteressado.

O leitor treinado na leitura deste tipo de romance antecipa seu final. Isso de modo nenhum diminui o valor da obra, uma vez que o happy end e a consequente premiação da virtude e o castigo do vício são típicos dos romances românticos. Então, livres da preocupação de saber o final da história, podemos deter-nos em pormenores da construção do livro.

Horácio, por exemplo, é tratado sem nenhuma complacência pelo narrador: seu dom-juanismo, sua figura de janota, a vacuidade de sua vida são ironizados a cada passo. Talvez aí se possa ver a atitude romântica de despeito pelo indivíduo acomodado ao status quo da época, sem a auréola de marginalização e inferiorização que atrai as simpatias do narrador para Leopoldo. Assim, a oposição entre os dois rivais não é gratuita: é a forma de o romancista valorizar, através da figura de Leopoldo, os atributos indispensáveis ao herói romântico. Já entre as figuras femininas da obra a oposição de caracteres não é assim tão marcada: tanto Laura como Amélia são jovens, belas e ricas. Por que, então, a presença de ambas? Para haver possibilidade de suspense, para que Horácio se divida entre elas na busca de sua Cinderela, e para que sua busca termine na cena grotesca de ele beijar os pés deformados de Laura.

Enquanto Horácio enceta a busca dos pés que calcem a minúscula botina que ele idolatra no altar de sua casa, Leopoldo entrevê um pé defeituoso subir à carruagem de sua eleita. Mais tarde, vendo o lacaio desta retirar no sapateiro uma botina disforme feita de encomenda, convence-se de que sua amada é aleijada. Dividido entre a atração do sorriso e a repulsa pelo pé, Leopoldo luta consigo mesmo durante dias, até que finalmente percebe que o defeito de Amélia não é empecilho para sua adoração. Seu comportamento é, pois, tipicamente romântico: o amor é o encontro de almas, e detalhes físicos não empanam a sublimidade de tal sentimento.

Não fosse um certo bom humor que A Pata da Gazela exige de leitores do século XX poderíamos suspeitar intenções ocultas em José de Alencar: a fixação de Horácio no pé da amada não anteciparia o estudo de casos patológicos do romance naturalista? A impiedade do narrador em relação a Horácio não seria uma sátira ao dom-juanismo romântico? A explicitação da metáfora do leão e da gazela não constituiria uma desmistificação da retórica romântica? Tudo isso é possível. Mas, nesse caso, se havia segundas intenções alencarianas por trás da obra, a realização não correspondeu às intenções, pois A pata da gazela fica mesmo é ao nível do romance ligeiro, em cujo previsível capítulo final as núpcias sigilosas fazem Leopoldo entrar na posse não só do sorriso da amada, mas também das cem apólices do dote e de seus dois pezinhos de Cinderela.