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Título do artigo:

O Alienista

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por:

[Machado de Assis]

Através da obsessão científica do Dr. Simão Bacamarte e de suas consequências para a vida de Itaguaí, Machado de Assis faz neste livro a crítica da importação indiscriminada de teorias deterministas e positivistas em nosso país.

I - Narrador

Em O Alienista ,escrito em terceira pessoa, Machado de Assis usa, inicialmente, a autoridade das crônicas antigas, como podemos perceber no início do texto:

'As crônicas da Vila de Itaguaí que em tempos remotos vivera ali um certo médico...'

Em ritmo de 'era uma vez' dá-se o começo da narrativa. Três expressões assumem um papel de relevo neste primeiro contato nosso com o narrador: crônicas, tempos remotos e o vivera. As três reforçam a antiguidade da história, dando-lhe a mesma autoridade que o amarelado empresta aos livros. As crônicas trazem a respeitabilidade do que é aceito pela tradição como verdadeiro. Se elas dizem, não há que contestar. Os tempos remotos servem para distanciar esta narrativa do tempo presente, evitando qualquer deturpação por interesses imediatos. Finalmente, o verbo no pretérito mais-que-perfeito - vivera - reforça os já distanciados tempos remotos. Assim, uma expressão intensifica a outra, cabendo-nos perguntar por que o narrador se interessaria tanto em manter a história restrita a um tempo passado, e bastante passado.

A resposta já foi colocada no início do parágrafo anterior: a distância no tempo aumenta a respeitabilidade da narração, pretendendo dar-lhe uma autoridade quase que incontestável, além de favorecer um distanciamento crítico do narrador-cronista em relação à história.

Entretanto, caso este narrador-cronista queira deturpá-la em proveito próprio, ele não pode fazê-lo, pois notamos no livro a presença de um segundo narrador, que reconta a história, parecendo garantir a isenção da mesma.

O foco narrativo deste segundo narrador está em conformidade com os princípios da literatura realista; isto é, trata-se de um narrador-onisciente, preocupado com a objetividade. Embora este narrador tenha a capacidade de nos trazer os aspectos íntimos dos vários personagens, o que não poderia ser feito pelo narrador-cronistas, ele centraliza a sua atenção em Simão Bacamarte protagonista do conto. Ao mesmo tempo, procura mostrar aqueles que se revelam mais decadentes e denunciadores dos tipos humanos presentes em O Alienista. Por exemplo quando a esposa do boticário Crispim está presa no hospício e ele não vem libertá-la, o narrador a faz desfilar uma série de acusações ao marido. Estas acusações estão em desacordo com o comportamento da personagem ao longo da história - ela sempre pareceu acatar e respeitar o marido - revelando, assim, que na verdade a personagem até então apenas 'mantinha as aparências', era cúmplice do marido.

'- Tratante!...velhaco!...ingrato!...Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres...Ah! tratante!...'

E assim por diante...Através da 'loucura' de vários personagens [pelo menos assim o julgava o Dr. Bacamarte - o alienista], o narrador vai mostrando as misérias humanas, o que demonstra ser intrusa e não imparcial a sua onisciência.

Entretanto, a suposta 'confiabilidade' do narrador-cronista e a suposta 'objetividade' do narrador-onisciente relativizam aos olhos do leitor, esta intrusão, fazendo predominar a impressão de isenção do[s] narrador[es] que é característica da literatura realista.

II - Enredo

O Dr. Simão Bacamarte, médico da Corte, volta à terra natal, Itaguaí, para entregar-se de corpo e alma ao estudo da ciência. Com o tempo, resolve dedicar-se ao estudo da loucura, fundando o seu manicômio, a Casa Verde.

Com persistência e abnegação, o médico vai trabalhando com os desequilibrados mentais que mandava recolher à Casa Verde, sempre buscando entender o que era loucura. Vem-lhe então à mente uma nova teoria que alarga o conceito de loucura, acabando com a antiga e aceita distinção entre normalidade e alienação mental.

Expõe a nova teoria ao padre Lopes, o clérigo de Itaguaí, que a acha perigosa:
'Com a definição atual, que á de todos os tempos', acrescentou, 'a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?'

No entanto, é destruída a cerca...O sábio começa a encerrar em seu manicômio uma grande quantidade de pessoas, cujo comportamento era até então considerado 'normal' pela sociedade: os que possuíam 'mania' de oratória, como Martim Brito, os vaidosos, como o albardeiro Mateus, os excessivamente corteses, como Gil Bernardes, os emprestadores de dinheiro, como o Costa, e, dentre todos eles, a própria esposa, Dona Evarista, que passara a noite hesitando entre um colar de granada e outro de safira para ir ao baile...É bom que se diga que o padrão da normalidade era constituído pelos critérios do alienista, obviamente em consonância com os ditames da Igreja e dos poderes constituídos.

Tão grande foi o número de internações, várias aparentemente injustas, que ocorre uma rebelião em Itaguaí, liderada pelo barbeiro Porfírio. Este prometera destruir a Casa Verde, mas uma vez no poder entra em acordo com o Dr. Bacamarte. Isso basta para que haja uma nova revolta, liderada por outro barbeiro, o João Pina. Um destacamento militar, vindo da capital, põe fim às desordens em Itaguaí e o médico pôde prosseguir seu trabalho.

Com o tempo, as conclusões do alienista sobre a loucura alteram-se drasticamente.

Louco não é mais o desequilibrado, mas sim aquele que exibe um perfeito equilíbrio das funções mentais. Por causa disso, Simão Bacamarte liberta os antigos loucos e passa a prender os novos, como o padre Lopes, a esposa do boticário Crispim e o barbeiro Porfírio: primeiramente preso pela inconsistência de sua rebelião; depois, por ter percebido essa mesma inconsistência, e se recusado a liderar outra rebelião...
Com alguns meses de tratamento, todos foram soltos após revelarem algum desequilíbrio, provando que estavam curados, mas o nosso alienista não fica contente: ainda não chegara a uma conclusão em suas pesquisas. Começa a desconfiar que ela não havia curado ninguém, que os pacientes só haviam revelado um desequilíbrio que já possuíam anteriormente. Com isso, desloca seu estudo para si mesmo. Certifica-se de que é a única pessoa realmente equilibrada de toda a vila e se tranca na Casa Verde, declarando-se ao mesmo tempo médico e paciente. Morre depois de alguns meses.

O enredo deste conto, além de discutir ironicamente as fronteiras entre a razão e a loucura, também coloca a questão do poder. Todos os que o exercem em Itaguaí, incluindo-se dentre eles o revoltoso barbeiro Porfírio, fizeram uma composição com Simão Bacamarte, o que sugere que tanto a razão quanto a loucura são usadas pelo poder, dependendo de seu interesse. Por isso nada foi feito de efetivo contra a Casa Verde, tendo disso os prisioneiros liberados pelo próprio alienista. Assim, podemos concluir esta primeira leitura possível com um pessimismo machadiano: 'O mal não parece estar no 'racional' ou no 'normal' mas no humano...'