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O Tempo e o Vento

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[Erico Verissimo]

O Tempo e o Vento é uma trilogia épica que remonta ao passado histórico do Rio Grande do Sul, dos séculos XVIII e XX, focalizando as disputas de terra e poder pelas famílias Amaral, Terra e Cambará. Está dividido em O Continente, cobrindo o período histórico do século XVIII até 1895, com as lutas do início da República. O Retrato trata das primeiras décadas do século XX e O Arquipélago chega até l945, durante o governo de Getúlio Vargas.

O Continente

Na primeira parte da obra, O Continente, ocorre o nascimento da estirpe Terra Cambará. Seu primeiro ascendente Pedro Missioneiro, índio educado por padres espanhóis, irá unir-se a Ana Terra. Nas linhas iniciais do romance, os eventos datam de junho de 1895. É noite fria de inverno e lua cheia. José Lírio, com o medo lhe vindo debaixo das tripas, subindo-lhe pelo estômago até a goela, como uma geada, observa o Sobrado dos Terra Cambará. Recebeu ordens para subir ao campanário e ficar de olho firme no quintal do Sobrado e fazer fogo sem dó nem piedade, caso alguém aparecesse para tirar água do poço.

Agachado atrás de um muro, prepara-se para cruzar a praça e chegar à igreja, mas teme ser atingido por um tiro. Interroga-se de onde vem o medo e o atribui à hereditariedade, ao sangue da mãe. Avança cautelosamente a cabeça e coloca apenas o olho esquerdo no canto do muro para espiar o Sobrado.

Ao espiar com um olho, vê apenas a fachada branca, a dupla fileira de janelas, os altos muros da fortaleza. Conclui que o casarão tem 'algo de terrivelmente humano' e por isso seu coração pulsa com mais força. Espia a fortaleza de baixo para cima. Sente tristeza, vinculada à presença do medo, temendo a morte ali tão próxima.

Observa a fachada do casarão por alguns instantes. Lembra-se de que Maria Valéria, a mulher que ama, sem ser correspondido, está lá dentro do Sobrado. Solta um suspiro, quase um soluço. Decide-se por mais uma corrida, mas permanece quieto; da água-furtada do Sobrado surge um clarão, acompanhado de um estampido. Vê um homem tombar. Enfim, José Lírio alcança o interior da igreja de N. Sra. da Conceição, padroeira da cidade. Sobe devagarinho os degraus que levam ao alto da torre. Sente um aperto no coração. O Sobrado se acha agora tão perto. Sabe que perdeu Maria Valéria ao se transformar em um maragato. Sente que há mais alguém ali no campanário. Volta-se e vê o mesmo sino que dobrava no dia do enterro de sua mãe. Descreve a boca do sino como uma 'boca de monstro muito preta e aberta'.

Fica a olhar a fachada do Sobrado. Tem dois inimigos: o Sobrado a sua frente e o sino pairando sobre a cabeça. Nesse momento, José Lírio entra no Sobrado através da memória. Recorda-se dos serões, nas noites de inverno, as conversas amigas. Pergunta-se o que se passa no Sobrado.

Licurgo espia o campanário do interior do Sobrado. Há uma esperança de vida ali dentro; está para nascer um filho de Licurgo. Sua mulher Alice já sente as dores do parto, acompanhada pela irmã Maria Valéria, chamada de Dinda pelas crianças.

Licurgo vê os dois cadáveres estendidos há dias no meio da rua, próximo ao solar. As feições descompostas não podem ser vistas agora à noite, mas o vento já espalha o cheiro pútrido que entra pelo casarão. Mas resiste, sabe que o lugar da família é no Sobrado, ninguém os tirará de lá. Não está sozinho, seus companheiros, sua cunhada Maria Valéria, Dona Bibiana, Alice, sua esposa, que está entre a vida e a morte para dar à luz a criança, resistem com ele.

Está atormentado com a esposa sobre a cama para dar à luz. Se nascer menina, terá o nome de Aurora para celebrar a vitória sobre os que cercam o Sobrado. A memória o traz de volta aos dezessete anos, quando sua mãe, Luzia, em cima de uma cama, era consumida por um tumor maligno. Parece escutar os sons de uma valsa remota, tocada na cítara pelos dedos maternos magros e pálidos. Sente até a estranheza que a presença dela lhe provocava.

Toríbio e Rodrigo, filhos de Licurgo, tremem sob as cobertas com medo dos federalistas que cercam o casarão. Toríbio tem consigo o punhal que pertenceu ao seu avô. É o punhal a palavra-senha que abre caminho para o capítulo A Fonte, cuja história, sobre a luta entre Portugal e Espanha pela posse da Colônia de Sacramento, aborda as origens épicas deste período.

É introduzida a narrativa sobre a colonização no Rio Grande do Sul e a presença de padres na catequização dos índios. Há o destaque para a história do índio Pedro Missioneiro que cresce na missão, aos cuidados do cacique D.Rafael. Sua educação é seguida de perto pelo padre Alonzo, proprietário do punhal que passa ao poder de Pedro e deste para os homens da família Terra Cambará. Aí se mesclam as lendas, os mitos e superstições à História oficial do Rio Grande do Sul e às revoluções feitas ao lombo dos cavalos.

No capítulo 'Um Certo Capitão Rodrigo' é apresentado Rodrigo Cambará, caracterizado pela crença de que Cambará macho não morre na cama. Bate-se nas coxilhas contra os inimigos dos gaúchos sempre reforçando sua valentia. Casa-se com Bibiana Terra, mas logo não suporta a vida sem os grandes desafios dos campos de batalha, ao ar livre e sem os amores fáceis e descompromissados. Morre em combate, quando os Farrapos lutam para tomar o casarão dos Amarais, inimigos dos Terra Cambará.

O primeiro senhor do Sobrado é Aguinaldo Silva. Pouco se sabe de sua vida. Diz ser pernambucano. Corre o boato de que matou a esposa por tê-la encontrado com outro homem. Suas feições são grotescas; baixo, de pernas muito curtas, uma cabeça triangular, de pescoço curto, e uma cara de chibo.

Aguinaldo gosta muito de dinheiro e de emprestá-lo a juros altos. Como pagamento dos empréstimos, apossa-se, muitas vezes, de várias propriedades em Santa Fé, inclusive do terreno de Pedro Terra, filho de Ana Terra com Pedro Missioneiro. Aí constrói o Sobrado, solar digno de um nobre. Por esse motivo, a filha de Pedro Terra, Bibiana, jura que se apossará das terras de seu pai.

A família de Aguinaldo Silva tem um único membro, sua neta, Luzia, que estuda em um colégio na Corte. Aguinaldo deseja dar à neta tudo o que os pais dela não puderam dar. Entretanto, mais tarde, conta em segredo ao padre da cidade que Luzia não é sua neta. Ele a adotou em um orfanato e a criou como neta, fato que a moça desconhece. Ao deixar o Colégio, Luzia muda-se para Santa Fé e passa a ser a 'senhora do Sobrado'.

Destoa das mulheres do lugar, acostumadas a esperar pelos maridos, quando estes partem para lutar nas muitas revoluções. Tudo em Luzia é novidade: é rica, bonita, toca cítara - instrumento que pouca gente ou ninguém ali na vila jamais ouvira - sabe recitar versos, tem bela caligrafia, e lê até livros.

Mas tem algo de demoníaco; quando aspiram o perfume que emana dela, não podem fugir à impressão de que a neta do pernambucano é uma 'mulher perdida', exemplo perigoso para as moças do lugar.

Os primos-irmãos, Bolívar e Florêncio Cambará, apaixonam-se por Luzia. Mas ela escolhe Bolívar, que levará a mãe Bibiana para morar com o casal, que o incentivou a casar com a bela mulher, porque deseja tomar o Sobrado de Aguinaldo Silva. Mas Bolívar está angustiado. A festa de seu noivado ocorrerá no momento em que Severino, negro que compartilhou com ele as brincadeiras de infância, será enforcado, diante do Sobrado. Não entende por que a noiva insiste em manter a festa de frente para o enforcamento do negrinho.

Outra personagem importante na relação com Luzia é o Dr.Winter. Este imigrou da Alemanha, usa chapéu alto como chaminé e roupas estranhas. O doutor tem interesse secreto pela moça. Lembra-se da festa de aniversário; ela toda vestida de preto, junto duma mesa, a tocar cítara com seus dedos finos e brancos. Nessa noite ficara fascinado a observá-la, e houve um minuto em que uma voz - a sua própria a sussurrar-lhe em pensamento - ficara a repetir: Melpômene. Sim, Luzia lhe evocava a musa da tragédia.

Por isso, quando ia ao Sobrado, examinava-a furtivamente 'com olhares oblíquos'. Winter se encanta por ser o primeiro a mencionar, naquela vila tão distante, o termo Melpômene. As mulheres de Santa Fé, como Ana Terra, Bibiana, Maria Valéria, têm outros valores. São mulheres de gaúchos, que, ao partirem para as revoluções, deixam-nas esperando, criando os filhos. Luzia não pertence a esse grupo.
Winter sentia-se feliz por ser um estrangeiro naquelas terras: era uma forma de manter a sua independência. Estava no Brasil porque se metera em uma revolução fracassada e teve de fugir. Encontrou Carl von Koseritz, que o aconselhou a estabelecer-se em Porto Alegre, mas dali não gostou e acabou em Santa Fé, atrás das ruínas das reduções jesuíticas, cujas lendas o seduziam.

Bolívar passa a noite, que antecede a festa de seu noivado, em claro por causa do negrinho que será enforcado. Bibiana, ao vê-lo tão abatido, crê que é porque irá se unir a uma moça como Luzia. O Sobrado era para Bibiana um intruso em cima de terra tão querida.

Bolívar caminha para a festa, mas a atmosfera que o envolve não parece ser de bom agouro; tudo está marcado pela cor preta. A mãe está de preto, o ar parado, os corvos voam pelo céu.

Mas Dr. Carl Winter, na festa, vê a bela Luzia vestida de saia bem rodada, verde, cabelos presos por pente em forma de leque e no centro um faiscante brilhante, como a Teiniaguá, a jovem bruxa moura que o diabo, segundo a lenda, transformara numa lagartixa.

O enforcamento ocorre na praça em frente ao Sobrado, enquanto Bolívar se compromete com essa mulher-demônio. O relógio de pêndulo marca a hora do enforcamento. Bolívar olha para ele e vê a imagem de um gato enforcado. O grito do animal cruza-lhe o espírito. Num choque, Bolívar lembra-se dum gato que, quando menino, ele vira um escravo enforcar no fundo do quintal, e o guincho estrangulado do animal lhe traspassa a memória como uma agulhada.

Na imagem do gato, vê Severino que, agora, será enforcado porque, em seu depoimento, disse tê-lo encontrado com as roupas sujas de sangue. A partir desse evento, o júri convence-se de que o negro não merece perdão, embora este afirme com insistência que o sangue de suas roupas era dele próprio por ter apanhado muito de seu patrão.

Bolívar, quando vem para a festa, ao passar por Chico Carreteiro, é zombado por este que lhe pergunta se haverá dois enforcamentos: de Severino e dele, ao se unir a uma mulher.

Na praça, no Sobrado, tudo fica tomado pelo silêncio. Severino pende da corda, os convidados se calam. Luzia, como se nada tivesse acontecido, toca uma belíssima valsa na cítara, enquanto um reflexo da bandeirola da janela lhe põe uma mancha verde na testa. Para Winter todo o evento é uma 'rústica comédia provinciana'.
Meses depois, Luzia e Bolívar se casam. Aguinaldo agoniza em seu leito de morte. Bibiana, a sogra, tem o rosto iluminado, pois tomará, finalmente, o Sobrado. O relógio de pêndulo pára de repente, fato considerado de mau agouro. A morte de Aguinaldo coloca frente a frente Bibiana e Luzia.

Há uma epidemia de cólera-morbo em Porto Alegre. O Sobrado é isolado porque Bolivar e a esposa tinham estado em Porto Alegre e entrado em contato com a doença. O isolamento toma também conta do interior do Sobrado. Bolívar está trancado em seu quarto, sem comer, sem falar nem beber por ciúmes à esposa. Luzia está fechada em seu quarto, tocando cítara, brigou com a sogra e não pode vê-la. O filho do casal, ainda bebê, encontra-se isolado na água-furtada pela avó, Bibiana, que não permite a visita da mãe.

Bolívar resolve desobedecer à quarentena, imposta aos moradores do Sobrado, e sai portão afora, aos berros, dizendo que não fica mais ali. É alvejado e tomba morto. Luzia vive pouco, pois tem um câncer no estômago e Bibiana fica com o Sobrado e o neto, Licurgo, para educar.

Senhor absoluto do Sobrado, Licurgo casa-se com Alice, a quem não ama com fervor. Este amor é repartido com a amante Ismália Caré. O tempo continua sendo marcado pelo grande relógio de pêndulo. Ficção e História se mesclam no romance. Um exemplo é a cavalgada em comemoração à entrega dos títulos de manumissão aos escravos de Licurgo. Uma batalha é simulada, incluindo a imitação dos trajes próprios da cavalaria.