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Para Gostar de Ler Volume 10: (O Peru de Natal)

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[Mário de Andrade]

O narrador - Juca - resolve contar um episódio doméstico. Retoma o passado para investigá-lo, pois esse passado deixou-lhe impressões indeléveis. Ressalta-se o aspecto psicológico do conto, repassado da influência que exercem sobre o escritor as leituras e o conhecimento das doutrinas freudianas, que o fazem voltar-se para a valorização de uma mãe super-protetora, com afeto desmedido pelo filho, mas submissa às imposições do marido e pai autoritário e insensível. O passado que vem à tona é um passado crítico, recomposto pela análise que dele é feita no presente. Mário de Andrade utiliza um processo de reconstituição em que há vazão às influências recebidas de doutrinas estéticas do início do século XX.

O Peru de Natal trata de uma festa familiar, com a presença do círculo mais familiar ao narrador, sem que dela participem outros parentes mais distantes, excetuando-se também o pai do narrador, falecido.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira a mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Surge, então, a ideia louca de um Natal em família, sem a parentada do diabo que costumava ofuscar o brilho da festa. O narrador queria dar às suas três mães ( a mãe, a tia e a irmã) o melhor que lhe era permitido, porque nunca elas tiveram a oportunidade de saborear verdadeiramente um peru, já que nas festas que eram servidos perus, as mulheres três dias antes não paravam de trabalhar; a parentada devorava tudo, as mulheres ficavam exaustas e não provavam quase nada do que haviam preparado, entre doces e salgados finíssimos. Do peru, só experimentavam uns nacos de carne...

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas (...) como aprendera na cãs da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, si não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus gostos , já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

O peru foi feito, e depois da Missa do Galo, aconteceu o mais maravilhoso Natal da família. Enquanto o peru era servido, ficara abafada a mediocridade do quotidiano. Todos foram sendo tomados por um milagre de amor. Juca separou o maior e melhor prato para a mãe, sempre calada em sua cumplicidade, sempre sofrida em sua humildade.

Quando ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime. (...) Foi quando ela não pôde mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o prato evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Uma estranha luta é travada entre a memória do pai, que começa dominando o campo de batalha, e o peru, inferiorizado pelo ataque inesperado. Logo o narrador procura um meio de afastar o pai da contenda, mas buscou estratégias que pudessem fortalecer o peru, pois confessadamente tomara partido da ave. Porém, o defunto ia-se insinuando entre a memória dos membros da família, e, assim que o narrador gabou o peru, a imagem do pai cresceu vitoriosamente.

Percebendo seu erro de estrategista, o narrador passa a fazer o contrário, e para livrar-se da memória despótica do velho, lamenta a morte daquele que tanto se sacrificara pela família, daquele santo cuja imagem foi diminuindo, diminuindo. Somente assim a vida vai ressurgindo sensual e vibrante, apagando a memória do pai que gradativamente vai-se diluindo em lembranças ocasionais. Na batalha surrealista que havia sido travada, o peru triunfa e passa a dono da festa.

Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inexorável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso. Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever felicidade gustativa, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraídos do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si.

Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Depois do jantar, lá para as duas da madrugada, todos vão dormir, mas Juca vai ao encontro de Rose.

Mário de Andrade (1893-1945)
Nasceu em São Paulo. Além de escritor, foi musicólogo, professor e pesquisador da cultura nacional. Em 1918, iniciou uma longa colaboração em jornais e revistas como crítico de arte e cronista. Foi um dos responsáveis pela organização da Semana de Arte Moderna (1922), tendo participado de publicações modernistas como Klaxon e Terra Roxa e Outras Terras.