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Guimarães Rosa

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João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais. Passou a infância no centro-norte de seu estado natal, onde o pai exercia atividades ligadas à pecuária. Cursou o secundário e a faculdade de Medicina em Belo Horizonte.

Graduado, trabalhou em várias cidades do interior mineiro, sempre demonstrando profundo interesse pela natureza, por bichos e plantas, pelos sertanejos e pelo estudo de línguas (estudou sozinho alemão e russo).

Em 1934, iniciou carreira diplomática, prestando concurso para o Ministério do Exterior - serviu na Alemanha durante a II Guerra Mundial e posteriormente na Colômbia e na França. Em 1958, foi nomeado ministro; é dessa época o reconhecimento da genialidade do escritor, em consequência da publicação de Corpo de baile e Grande sertão: veredas, ambos de 1956. Em 16 de novembro de 1967, tomou posse na Academia Brasileira de Letras; três dias depois, em 19 de novembro, morreu no Rio de Janeiro.

Guimarães Rosa A este homem extraordinário, personalidade em que se combinavam qualidades tão diversas, Carlos Drummond de Andrade dedicou o poema "Um chamado João", reproduzido a seguir:

"João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?

Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?

Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,

civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?

Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeíam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar."

Ninguém melhor do que o genial Carlos Drummond de Andrade para penetrar o mundo particular de outro escritor genial, João Guimarães Rosa. E, no final, restam apenas pontos de interrogação, a nos mostrar que esse mundo de fantasia e realidade do sertão mineiro ainda é um mistério a ser desvendado. O sertão místico, a recriação da fala do sertanejo, o poder de descobrir a quinta face, o narrar o inenarrável, o responder-perguntar levando à reflexão, o pacto com o diabo: esse o mistério de Guimarães Rosa.

Publicando seu primeiro livro - Sagarana - em 1946, um ano após a queda de Getúlio Vargas e o início das produções da chamada Geração de 45, Guimarães Rosa apontaria novos rumos para a literatura brasileira. Passada a primeira fase do Modernismo e já vivida a experiência da prosa regionalista da década de 30, os contos de Sagarana abririam uma nova perspectiva para o regionalismo.

A principio, percebe-se uma revalorização da linguagem; a seguir, a universalização do regional. 0 valor da linguagem particular de Guimarães Rosa não está no rebuscamento das palavras no uso de arcaísmos, mas sim nos neologismos, na recriação, na invenção das palavras, sempre tendo como ponto de partida a fala dos sertanejos, suas expressões, suas particularidades. Com isso, as palavras recriadas ganham força e significado novos, como afirma o crítico português Oscar Lopes:

"As metáforas de Guimarães Rosa são tantas e tão originais que produzem um efeito poético radical: o efeito de ressaca do significado novo sobre o significado corrente. A gente lê, por exemplo, que `o sabiá veio molhar o pio no poço, que é bom ressoador', e não fica apenas com uma admirável vocação acústica; as palavras `molhar' e `poço' descongelam-se, libertam-se da sua hibernação dicionarística ou corrente, e perturbam como um reachado todavia surpreendente."

O mesmo estranhamento que a linguagem de Guimarães Rosa provocou no crítico lusitano, podemos perceber em passagens como:

"Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem-assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:

- Êpa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez! ...

E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.

- O gostosura de fim-de-mundo!..."

   Ainda para salientar a poesia, o ritmo e sonoridade de sua linguagem, transcrevemos um trecho do conto "O burrinho pedrês", em que o autor narra a caminhada da boiada, intercalando quadrinhas populares cantadas pelos vaqueiros. Observe como Rosa reproduz a sonoridade da marcha da boiada por meio de aliterações:

"As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...

`Um boi preto, um boi pintado,
cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.'

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...

`Todo passarinho' do mato
tem seu pio diferente.
Cantiga de amor doido não carece ter rompante...'

Pouco a pouco, porém, os rostos se desempanam e os homens tomam gesto de repouso nas selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil, só está quase pronta a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho inteiro - centopéia -, mesmo prestes assim ,

para surpresas mas.

- Tchou! ... Tchou! ... Eh, booôi! ...

E, agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro pega o balanço de busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam bovinamente. Devagar, mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejante - pata a pata, casco a casco, soca soca, fasta vento, rola e trota, cabisbaixos, mexe lama, pela estrada, chifres no ar...

A boiada vai, como um navio." (João Guimarães Rosa)

O misticismo, outro aspecto relevante da obra de Guimarães Rosa, está sugerido na última das interrogações de Drummond em seu poema-homenagem: "Tinha parte com ..." o diabo? Ou era ele a "ponte entre o sub e o sobre", dividido entre os que lutam "de antes do princípio", Deus e o diabo, o Bem e o Mal?

 Em Guimarães Rosa transparece todo o misticismo do sertão, uma religiosidade quase medieval, baseada apenas nos dois extremos e marcada pelo medo, pelo pavor, em que há até mesmo a preocupação de não invocar o demo, para que ele não "forme forma"; daí o diabo ser tratado por "o que não existe" ou "o que não é mas finge ser" e expressões semelhantes.

Assim é o sertão de Rosa: ora particular, pequeno e próximo; ora universal e infinito, pois "o sertão é o mundo" ou, melhor ainda, "o sertão é dentro da gente". Por isso, logo na abertura de Grande sertão: veredas, o autor nos situa diante do problema:

"O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo Jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá - fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões... O sertão está em toda a parte."