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Tocaia Homofóbica na Paulista: Exibição e Massacre

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“Sempre que qualquer aspecto do self for separado, rotulado como mau, ilícito, vergonhoso, culposo ou errado, a sombra ganha poder” (DEEPAK CHOPRA).

A Avenida Paulista que é o cenário da maior passeata gay do mundo, também tem sido frequente palco de violência contra homossexual. Isto mostra que passeata gay não ajuda muito a atenuar o preconceito. Segundo Silva (2010, p. 432), “as passeatas, como sucedem, não contribuem para o respeito e a conquista de direitos legais. Parece que acentuam, ainda mais, os estereótipos que pintam os homossexuais como devassos, sedentos por sexo, ensandecidos pela exposição”. Essa famosa Avenida de São Paulo é tão careta ou quadrada como qualquer ruazinha de cidade de interior esquecida por Deus e pelo poder público, talvez até pior, porque não se tem notícias de violência desses lugares longínquos como se tem dessa via urbana. A abertura de São Paulo, na verdade, é uma maquilagem de tolerância, uma farsa. A grande megalópole brasileira é racista e preconceituosa.

No ano de 1999, nessa mesma cidade de São Paulo, o adestrador de cães Edson Neris da Silva foi espancado, por skinheads, até a morte por causa de um simples afago no parceiro. Mas, na Paulista o que se ver são manifestações sutis de afeto de gays e lésbicas, por vezes assustados ou meio tímidos. Porém, para que seja vítima da violência bestial da homofobia basta que seja identificado como gay. Ou seja, que apresente o que Goffman (1988) chama de “visibilidade do estigma”, em outras palavras, efeminado, ou seja, são sinais corpóreos que indicam, para o senso comum, inferioridade de caráter ou fraqueza moral. Imagine se os gays se manifestassem afetivamente como fazem os heterossexuais que quase praticam sexo explícito nas praças e ruas? Mas isso, só raramente é considerado atentado ao pudor, porque a heterossexualidade tida como “normal” e legalizada, pode.

Nesta elegante Avenida, símbolo de maior poder econômico do país, os gays estão sempre sendo, a troco de nada, agredidos. Isso mostra o quanto o país é, de fato, machista. Os agressores se sentem machos justiceiros, portanto no direito de ferir, tirar sangue desses indefesos cujo crime é gostar de pessoa do mesmo sexo. Mas, esses agressores só aparentemente são machos. Na realidade são delinquentes da classe média, muito inseguros da própria masculinidade ou invejosos da conduta homossexual. Quando mais homofóbico mais gay em potencial. Quem agride gay não é o heterossexual resolvido, de bem com essa sua condição sexual, mas gay egodistônico (perturbado), com fachada de macho, que procura incrementá-la ainda mais na tentativa de eliminar qualquer sinal que possa levantar suspeita. Esses agressores são os legítimos gays enrustidos que não tem coragem de assumir seu desejo homoerótico.

Assim sendo, tentam destruir seu espelho, o retrato fiel daquilo que eles são, mas, nem em sonho, não aceitam. Eles não deixam chegar à consciência que o fator desencadeante da sua violência é a própria homossexualidade mal resolvida. Criam ideologias que acreditam justificar essa motivação sem conseguirem associar que nada justifica essa agressão porque é a própria homossexualidade negada que produz essa força destrutiva contra o outro que está, na realidade, dentro deles. O sofrimento desses sujeitos decorrente do interdito da vontade de fazer sexo com homem é transformado em ódio contra aqueles que julgam se permitirem a esse gozo.

Esses agressores querem provocar no gay a dor que lhes causa a falta desse gozo homoerótico. Torturam-se em saber ou imaginar que o gay goza com o mesmo sexo, numa boa, uma vez que subverteu a ordem da “heterossexualidade compulsória” (WITTIG apud BUTLER, 2003). Isto é, os gays fazem o que esses valentões gostariam de fazer, mas que, em pro do biológico, pagam um preço por se submeterem a essa ordem heterossexual. Até porque não se auto-reconhecem com esse potencial gay. Os agressores são uns frustrados, por isso eles se cercam de outros pseudos machos para darem contar, pelos menos no plano simbólico ou subjetivo, do seu ardente, porém, latente desejo homoerótico. Enfim, encontram abrigo em grupos que comungam da mentira de que são machos porque ostentam virilidade e são contra os gays.

Como diz Silva (2010), para afastar estes “fantasmas”, afugenta ou usa o homossexual como saco de pancadas para resguardar sua frágil masculinidade. Quando mais ataca mais se “desvencilha das dúvidas” que o corroem. Portanto, a aversão é a saída para se “garantir” de qualquer risco de “deslizamento” para a homossexualidade. Porém, a inveja do recalcado recai na forma de ódio sobre o outro que goza do que ele não se permite. Assim, o gay manifesto é uma afronta à auto-repressão desse desejo. Por isso, a perseguição, as críticas, a violência direta ou sutil. Decerto, o crime de ódio ou homofóbico, é praticado por homossexual que ostenta a “fachada” de macho, mas que vive em intenso e profundo conflito por não se aceitar homossexual.

Agora, em quase todo folhetim tem um homossexual caricato. Mas, quantas novelas terão que ser consumidas para aparecer o tal beijo gay? Parafraseando Oscar Wilde, diria que desse amor do qual já ousa se falar seu nome, ainda não mostra, dignamente, a sua cara. Se divertir à custa do gay caricato não significa tê-lo aceito como cidadão, que ainda luta pelo essencial modo de viver: sem opressão, casar, adotar filho, etc. A caricatura separa: eles, os gays, “anormais”, nós, heterossexuais, os “normais”. Estabelece uma distância asséptica, o gay caricato como bobo da corte. Na condição de caricato, o homossexual é tolerado, pois é um “não homem”, um “homem em falta”, assim atenua a afronta, e acentua as “diferenças” (que na verdade é apenas em relação ao objeto do desejo sexual) entre homossexual e heterossexual. Uma maior visibilidade homossexual não quer dizer, necessariamente, aceitação, ou que o homossexual deixou de ser discriminado, para atestar isso, basta o gay esteja na Paulista.

Por isso a agressão homofóbica não recai no caricato cuja caricatura já o coloca na condição de inferior, de desvalor, mas no rapaz homossexual discreto. Esse incomoda porque está pouco diferenciado dos demais, por isso se torna uma ameaça. O pensamento subjacente é: ele tem tudo para ser como eu sou (no caso, o sujeito agressor que reprime seu desejo homoerótico), então porque ele não se comporta como tal, mas não, se revela atrevidamente, ousadamente homossexual. Isso me fere naquilo que, com muita angústia e sofrimento, mantenho “secretamente” guardado. Então, esse desventurado terá que ser punido. Uma fantasiosa ou ilusória pureza da masculinidade, junto a uma determinada permissividade social e intolerância religiosa autorizam esse tipo de violência.

O mito nativo de que a nação brasileira é pacata se contradiz com a violência intensiva no cotidiano contra negro, pobre, mulher e gay. O Brasil é um país violento, sim, marcado pela ambivalência e pela ambiguidade da sua herança escragista e colonial (KEIL, 2005; MYNAIO, 2006; HOHLFELDT, 2010).  A violência é parte intrínseca da vida social, não existe sociedade sem violência, entretanto sempre existirão umas mais violentas que outras. Sem levar em conta o número de violência que, por medo de escândalo ou descrédito na atuação policial ou da justiça, não são notificadas, nos últimos anos, segundo Mynaio (2006) e Chaui (2006), a dimensão pública assumida pela violência no Brasil tem levado à “banalização do mal”.

Ninguém tem que aceitar homossexual, mas respeitá-lo, sim, enquanto pessoa e cidadão. Essa violência aos gays só denota que o mundo é gay, não pelo fato de que hoje há mais gays assumidos, mas pelo fato de que, por meio dessas agressões, se revela um universo de homossexuais reprimidos. Eles se acham muito machos para agredirem os gays declarados ou com “visibilidade do estigma”, quando, na verdade, estão tentando arrancar de dentro de si um desejo que consideram sujo, anormal, pecaminoso. Os homofóbicos mais históricos, agressivos e violentos, são justamente aqueles cujo desejo homoerótico está mais fortemente à flor da pele. Acham que atacando verbalmente ou agredindo fisicamente o gay, vão extirpar da consciência o desejo homoerótico. Quem mais ataca gay mais auto-denuncia seu desejo homoerótico latente.
Para Silva (1999), ainda prevalece o imperativo de que o sujeito pode até ser gay, mas que ele não revele essa condição por meio da “visibilidade do estigma”. Nas democracias que pregam a igualdade de direitos, é contraditório dizer que a aceitação homossexual tem melhorado. Isto, de algum modo, é legitimar que somente a condição heterossexual seja a única privilegiada em desfrutar da liberdade de expressão, dos espaços de produção e da convivência pública. Acatar esse limite é ser conivente com o preconceito, se não aberto ou por inteiro, mas da permissão restringida, controlada, que admite a alguns grupos que tenham somente direito e liberdade em pequenas “porções”, e acham que por isso estejam sendo justos e democráticos. Pois “esquecem” que, em termos de impostos, de todos são cobradas as mesmas taxas, e por ser homossexual, negro, mulher, ninguém paga pela metade (SILVA, 2010).

Os grupos de skinhead ou nazista são os mais perigosos, eles tem o homoerótico na eminência do manifesto, por isso são tão violentos, vestem-se de uma couraça masculina e a incrementam na tentativa de esconder, do mundo e de si mesmos, a fragilidade de uma identidade heterossexual. Sofrem com essa contradição e tentam atenuar esse sofrimento catando para o sacrifício o objeto que mais inveja, quem realiza aquilo que seria seu êxtase, sexo com outro homem, e o encontro salutar consigo mesmo. Portanto, essa violência é um tipo de exorcismo. Isto é, tomados pelo cio do desejo homoerótico, não saem à caça para dar evasão a esse desejo, o que seriam um desfecho natural, mas a perturbação inverte seu percurso tornando-os perseguidores que atacam quem julguem realizar esse desejo que eles negam de contemplar a si mesmos.

Parece não mais haver esperança de que o preconceito homossexual e a homofobia sejam um dia banidos da fase da terra, simplesmente porque, devido a sua condição nata de vulnerabilidade, a construção da identidade masculina é um processo violento de introjeção de valores simbólicos. Na ótica de Gikovate (1989), a construção da masculinidade não se dá em relação ao feminino, mas, em contraponto à homossexualidade. Assim sendo, também a tolerância não é a solução porque, como diz Derrida (2002, p.186), ela

encontra-se do lado da “razão do mais forte”, que é uma marca suplementar de soberania, é a boa face da soberania que, do alto, significa ao outro: eu te deixo viver, não me és insuportável, eu te ofereço um lugar em minha casa, mas não te esqueças, estou em minha casa. Eu te acolho com a condição que te adaptes às leis e normas de meu território, segundo minha língua, minha tradição e memória.

O gay não precisa de tolerância, essa que está condicionada ao bel prazer de quem a demanda, mas de Lei que garantam sua integridade psicológica e elimine definitivamente esse fluxo de agressões. Finalmente, durante milhares de anos, o homossexual foi vítima da falta de hospitalidade devido à interpretação errônea da história de Sodoma e Gomorra, porém, o verdadeiro crime continua se repetindo diariamente (McNEILL apud FORCANO, 1996). Se a evolução do humano caminhasse em paralelo com o progresso material, a Avenida Paulista seria de fato o espaço ideal para a convivência da diversidade não só no dia de Passeata Gay, mas também durante todo resto do ano. E isso estaria como exemplo para o Brasil e talvez para o mundo.

Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CHAUI, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. 1ª reimpressão. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
FORCANO, B. Nova ética sexual. São Paulo: Musa Editora, 1996.
GIKOVATE, F. Homem: o sexo frágil. 5. ed. São Paulo: MG Editores Associados, 1989.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1988.
HOHLFELDT, A. O desafio de se realizarem pesquisas socialmente úteis (Prefácio). In: SÓLIO, M. B. (Orgs.).Violência: um discurso que a mídia cala. Caxias do Sul: Educs, 2010.
KEIL, I. M. Descrença política e violência urbana. Existe uma relação? In: HARTMANN, F.; ROSA JR, N. C. F. (Orgs.).Violências e contemporaneidade. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2005.
MINAYO, M. C. S. Violência e saúde. 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006.
SILVA, V. G. Faca de dois gumes: percepções da bissexualidade masculina em João Pessoa. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1999. (mimeo.).
______. Nuances dos testes psicológicos e algumas inquietações pós-modernas. João Pessoa: Ideia, 2010.