[Josué Guimarães]I- O Autor:Nasceu em São Jerônimo, em 1921. Josué era jornalista e funcionário do terceiro escalão quando eclodiu a Revolução Militar de 1964. Fora, antes, Diretor da Agência Nacional no governo João Goulart. Obrigado a exilar-se em Portu Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
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Camilo Mortágua

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por:

[Josué Guimarães]

I- O Autor:

Nasceu em São Jerônimo, em 1921. Josué era jornalista e funcionário do terceiro escalão quando eclodiu a Revolução Militar de 1964. Fora, antes, Diretor da Agência Nacional no governo João Goulart. Obrigado a exilar-se em Portugal, este fato foi um dos fatores que levaram o autor a enveredar pelos caminhos da ficção. A morte, em 1986, o surpreendeu no auge de sua carreira.

II- Introdução ao tema:

Romance publicado em 1980, Camilo Mortágua representa, na obra de Josué Guimarães,a culminância de uma trajetória e, ao mesmo tempo, o retrospecto dos resultados alcançados.

A incorporação do trajeto histórico do Estado coincide com a evolução da intriga, sobretudo com a biografia do herói que dá nome à obra. Nascido ao final do século 19, o protagonista vem a falecer na primeira semana de abril de 1964. Com isto, o autor introduz no fluxo narrativa setenta anos da história sul-rio-grandense; e, ainda que a família Mortágua, indiferente passe ao largo dos fenômenos externos, emergem ao fundo as notícias relativas às guerras europeias, revoluções brasileiras, o suicídio de Vargas, enfim, os fatos mais marcantes do século 20, misturados a trivialidades domésticas, mudanças nas modas, novos costumes, etc. Assim sendo, se a história não é o eixo que suporta o transcurso dos acontecimentos, ela ali está, e sua fusão a fatos miúdos do cotidiano, porém igualmente relevantes segundo o modus vivendi dos Mortágua, reforça a evidência de que o alheamento crescente desses significa seu paulatino deslocamento do poder - econômico e social.

Os setenta anos ocupados pela biografia de Camilo correspondem ao processo de desagregação da classe dominante sulina de extração rural. Transferidos para um centro urbano mais desenvolvido, a dilapidação das propriedades dos Mortágua deve-se, de um lado,, à sua leviandade e falta de tino gerencial; em outras palavras, decorre de sua incapacidade de adaptação ao novo cenário, em que avulta a mentalidade empresarial burguesa. De outro lado, são os acontecimentos históricos que empurram o País na direção da atividade mercantil e industrial e isto, a família, envolvida com seus amores e culpas, doenças e mortes sucessivas, não pode alcançar e compreender.

O romance se enxerta à temática da decadência.

1. Enredo:

Camilo Mortágua, o protagonista, revê a história de sua vida ao ir ao cinema. Na tela, em vez de Cleópatra, a Rainha de César, o filme mostra a trajetória da decadência da família de Camilo. Eis o recurso narrativo utilizado pelo escritor. Como contexto histórico, Josué utiliza os sofridos acontecimentos do golpe de 64. A história se passa em Porto Alegre, recuperando o bairro da Azenha, a avenida Independência, o parque Farroupilha, a avenida Osvaldo Aranha, a avenida João Pessoa, a Faculdade de Direito, a Santa Casa de Misericórdia, a Igreja da Conceição, etc.

Nascido ao final do século XIX, Camilo Mortágua morre na primeira semana de abril de 1964, fornecendo as coordenadas temporais que facultam a introdução, no fluxo narrativo, de setenta anos da história sulina.

Os setenta anos de Camilo assentam-se numa sequência narrativa dividida entre a moldura - os cinco primeiros dias do mês de abril de 1964, durante os quais ocorrem simultaneamente o golpe político e militar contra o governo constituído e a revisão da biografia de Camilo - e a intriga propriamente dita. Esta apresenta cronologicamente a vida do herói, cindida em três fases: a infância e juventude, quando a família vive seu apogeu irresponsável, na primeira quadra do século; a maturidade, durante a qual ele restaura o poderio econômico do clã através da incursão no comércio e indústria porto-alegrenses; a velhice, quando ocorre a decadência final, já na segunda de do século. Estes setenta anos, que explicitam os temas descritos, mostram-se, no decorrer do relato, embutidos em três noites, de modo que, na rapidez do écran, Camilo assiste à sucessiva e galopante desagregação de sua existência e de sua família, o que culmina numa morte inglória e quase anônima, na escuridão de um cinema de bairro.

Em outras palavras, todo o largo espectro da vida do herói cabe inteiramente na semana de abril, durante a qual se dão o golpe militar e a consolidação, no poder público, de seus líderes. Camilo, mais uma vez, mantém-se alheio ao evento histórico, mas isso não significa que não faça a parte dele. Pelo contrário, como se encaixa em seu começo, acaba por imprimir-se neste princípio, vindo a demonstrar como o movimento serviu para reavivar seres como ele, para a seguir, acelerar seu passamento.

Este fato é que dá sentido à moldura do romance, sem o qual não se faria a transferência para o presente, assinalado este pela continuidade dos acontecimentos desencadeados na semana em que é morto o protagonista. Situando a narrativa no período crucial em que se inaugura uma nova época da história nacional, o escritor o traduz como um rito de passagem, que exige, para sua efetivação, um ato propiciatório - a morte de Camilo. Por isso, condensa nele toda uma aventura humana fadada ao sacrifício e revela a oportunidade de sua consumação. Nesta medida, se o livro se propõe a reconstituir um passado para diagnosticar a deterioração gradual de um grupo que exerceu um domínio inquestionável no Sul, ajustando as peculiaridades do romance histórico à inclinação temática da produção literária de Josué Guimarães, ele ainda se projeta para a atualidade do leitor, lançando-lhe a indagação, sempre relevante, a respeito da permanência ou modificação das circunstâncias que suscitaram a imolação de Camilo Mortágua, no momento em que nada mais tinha a oferecer à existência.

2. Comentário crítico:

Como o 'flâneur' de Baudelaire, Camilo Mortágua experimenta a vertigem das ruas. Só que ao invés da volúpia da modernidade, da descoberta de multidões que vagam pelos 'boulevards' de Paris, dos encontros fortuitos, dos ruídos excitantes de uma grande metrópole, Camilo se perde em becos e avenidas de Porto Alegre sem nada enxergar, sem conhecer a alegria desse turbilhão. O presente não lhe diz mais respeito. Contudo a pensão sórdida, onde vegeta, o oprime de tal forma que ele precisa andar, dissolver os fantasmas. É assim que terminará entrando no cine Castelo nas noites de 3, 4 e 5 de abril de 1964. Nestas noites de abril, quando tanques garantem o recente golpe militar, quando os últimos opositores são presos e o buliço das ruas ainda traz os tímidos protestos da população, quando enfim o Brasil afunda-se na ditadura, o velho Camilo assistirá não ao filme programado [ Cleópatra ], mas a outro que representa a sua vida. Ao contemplar o tempo perdido, uma profunda comoção arrastará o protagonista por sobre as contingências do cotidiano.

Trata-se de uma história de fracassos. A antiga grandeza dos Mortáguas, estancieiros cheios de poder, se dissolvendo em doenças, traições e morte. Neste universo crepuscular a fazenda já se decompõe enquanto a família ainda reitera os velhos rituais do patriarcalismo. No casarão da Avenida Independência caberá ao jovem Camilo lutar pela preservação do patrimônio corroído no fim de uma era social. A oligarquia está superada pela história. O que o rapaz intenta, rejeitar o destino sombrio que espreita a sua classe através da própria transformação individual em comerciante, naufragará no torvelinho de paixões que não tem nada a ver com a hierarquia social e sim com as forças mais irracionais dos seres. Quer dizer, a catástrofe oligárquica não basta para se entender a pulverização do mundo familiar.

Camilo Mortágua é uma obra elaborada em meio à exasperação. Os ditadores não estavam sozinhos: a classe média ainda aplaudia o 'milagre', muitos letrados e artistas aderiam ao 'stablishment', outros refugiavam-se na subjetividade ou em bizarrices culturais, o terrorismo de estado campeava e as liberdades democráticas pareciam longínquas. Neste quadro de vilanias e horrores, o sofrimento era, por assim dizer, uma questão da circunstância histórica. Introjetava-se na visão dos que combatiam a ordem autoritária.

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De repente uma mocinha entra no cine Castelo para dizer a Camilo Mortágua que nunca deixou de amá-lo e que vai salvá-lo financeiramente. Mas um tiro perdido atinge Camilo [ que vira segundos antes na tela o seu próprio desenlace]. A vida é absurda, regida pelas gratuitas leis do acaso. Apenas o epílogo está previsto: vamos perecer.