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Título do artigo:

Contos Negreiros

97

por:

[Marcelino Freire]

Sobre o Autor

Marcelino Freire escreve com coração. Arranca as artérias, as veias, a aorta e faz do seu próprio sangue, sua tinta. Os ventrículos se esfregam na folha em branco, o tum-tum faz o ritmo do seu texto parecer ter o som da fluidez dos hematócitos que circulam diariamente no nosso corpo. Marcelino Freire escreve com o coração. As manchas de sangue sujam os livros do recifense com imagens assustadoramente reais.

Contos Negreiros deveria vir com uma recomendação médica expressa “atenção, risco de envenenamento por hematócitos marcelinianos”. Publicado pela Editora Record, vencedor do Prêmio Jabuti 2006, os contos são sujos, viscerais, poéticos com uma crueza e sinceridade assustadoras. É hipnose pura o principal sintoma do marcelianismo. O leitor não foge daqueles cânticos assustadores e viciantes e daquela forma de escrever que faz qualquer professor de português ter um ataque cardíaco.

As vírgulas de Marcelino são imaginárias. Não há uma imposição, há diálogo textual. Marcelino imagina dramas de negros veados, de favelados que sonham em ser Xuxa, de negros jogados, esquecidos, chutados por brancos, racistas, idiotas. Num país onde o preconceito racial é praticado nas entrelinhas, às escondidas, onde a resistência não é possível e as pessoas têm vergonha da cor de suas peles. Tudo isso é exposto, cantado, criticado de uma forma genial pelo escritor/poeta recifense. Quando os negros descem do morro para fazer documentário de branco de Copacabana, e são chutados, porque negro no Brasil é assaltante, é ladrão, é vagabundo.

São 16 cânticos entoados ao longo de 109 páginas molhadas de sangue, com a marca do coração de alguém nascido sob a batuta de Xangô. A apresentação sob as mãos do homem dos homens, o mestre Xico Sá e sua inteligência sagaz, mortal. O livro é um belo copo de hematócitos servido para embreagar os leitores no abismo do que é descrito. E o melhor, não é caro.

Análise da obra

Na obra Contos Negreiros, Marcelino Freire aborda temas delicados e polêmicos como racismo, turismo sexual, tráfico de órgãos e homossexualismo. A paisagem urbana é o cenário principal de seus cantos (contos). Algumas paisagens de importantes centros urbanos, como Recife e São Paulo, como as zonas de prostituição, morros, favelas e pontos turísticos, tornam-se palcos para a exposição de uma realidade complexa e miserável, vivida por prostitutas, “bichas”, negros, índios, além de abrigar traficantes de órgãos e de drogas, e turistas sexuais. Marcelino Freire apresenta 16 narrativas (contos e crônicas) que procuram aproximar-se de uma linguagem coloquial, memorial e, às vezes, musical, baseada nas influências deixadas pela oralidade das ladainhas e canções nordestinas. Ele escreve a partir do ponto de vista de brasileiros miseráveis ou mortos-vivos, que, como “zumbis”, vendem de tudo para sobreviver: drogas, o corpo, o rim. Sua criação literária passa pela valorização da memória, oriunda das heranças culturais – a cultura popular nordestina – e a percepção de um tempo presente. As experiências ocorridas no dia a dia das metrópoles brasileiras apresentam testemunhos de sujeitos que estão à margem da sociedade contemporânea. Sujeitos sem voz, sem espaços para o testemunho, vistos quase como objetos ou tratados como objetos pela mídia e por toda sociedade.

Capa do livro Contos NegreirosEmbora o título do livro e a capa do mesmo, com uma imagem de um homem negro (possivelmente escravo), indiquem, num primeiro momento, que as narrativas são dedicadas a histórias sobre o negro, o autor não parte do preconceito ao negro ou de sua realidade de exclusão para compor sua obra. Ela é composta pela experiência de exclusão de todos os “mortos-vivos” que perambulam pelas ruas dos grandes centros do país, independentemente da cor da pele.

A narração de uma experiência guarda algo da intensidade do vivido, seja por aqueles que narram sua própria experiência ou por aqueles narradores observadores que narram a experiência do outro. Nos Contos Negreiros, são narrados acontecimentos comuns à vida de sujeitos comuns. Fatos do dia a dia narrados por seus protagonistas, aqueles que sempre têm suas vozes emudecidas pelos próprios acontecimentos dos quais são autores. Para tanto, Freire utiliza-se, como já citado, da oralidade, da memória, ora do relato objetivo, ora do relato subjetivo, para desenvolver testemunhos que não visam formar uma identidade, mas apresentar as condições extremas vividas em plena contemporaneidade. Tais condições são encontradas no “canto” Nação Zumbi, que apresenta a história de um personagem sem nome, que estava prestes a fechar um negócio: a venda do próprio rim para traficantes de órgãos. O personagem narra com indignação e frustração a interrupção da compra, a impossibilidade do fechamento do negócio. A polícia descobre a trama e o desfecho da história é a afirmação: “sei que vão encher meu rim de soco”. Ele acreditava que a venda do seu órgão era uma forma de mudar de vida, de “livrar sua barriga da miséria”. O texto mostra a pobreza, o comércio ilegal, o corpo como moeda, como pode ser lido na seguinte passagem do conto:

“E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha até marcado uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. E roda de samba
pra gente rodar (..) E o rim não é meu, sarava?
Quem me deu não foi Aquele-lá-de-cima, Meu Deus,
Jesus e Oxalá? (...) O esquema é bacana. Os caras chegam aqui levam a gente para Luanda ou Pretória. (...) Puta oportunidade só uma vez na vida (...)”
.

Na história acima, o protagonista teria que ir a Luanda ou Pretória para fazer sua cirurgia. As metrópoles, desde o período moderno, surgem como centros para a formação cultural, intelectual e profissional do homem que, então, através do trabalho, gera o progresso. No entanto, elas tornaram-se também o cenário mais comum dos processos ilícitos construídos pela humanidade: tráfico, sequestro, violência, roubos. O autor abriga seus personagens dentro das zonas mais inóspitas da cidade, mas sem deixar de produzir um fascínio nos próprios personagens (e nele mesmo). O testemunho representa as experiências de um coletivo que as torna, sobretudo, comunicáveis. Algo que, embora possa virar notícia, não torna a experiência uma mensagem a ser legitimada. Segundo Beatriz Sarlo, para existir a experiência é necessário que a narração esteja unida ao corpo e é exatamente esse tipo de narração que é feito pelos personagens dos Contos Negreiros, pois suas experiências são contadas com os próprios corpos e através da memória do seu autor. As experiências do nordestino que muda para a cidade grande oferecem a Marcelino Freire uma série de acontecimentos e histórias que são transformadas em relatos do cotidiano dos personagens excluídos.

Os testemunhos dos personagens apresentam a vida do citadino, em particular daqueles que habitam no submundo da cidade, vivendo à margem, mas que ganham voz e corpo nas narrativas do autor pernambucano. Os sujeitos-testemunhas transmitem suas experiências fatídicas, entretanto, esses personagens não são mais importantes que os efeitos dos seus testemunhos ou que as mensagens transmitidas pelos seus relatos. Para Beatriz Sarlo: “Em suma, não se pode representar tudo o que a experiência foi para o sujeito, pois se trata de uma matéria prima em que o sujeito-testemunha é menos importante que os efeitos morais de seu discurso. Não é o sujeito que se restaura a si mesmo no testemunho do campo, mas é uma dimensão coletiva que, por ocasião e imperativo moral, se desprende do que o testemunho transmite”.

O testemunho na obra de Freire nasce de um anseio subjetivo, mas que expressa situações limites vivenciadas por um coletivo, revelando, portanto, o cenário que compõe a vida contemporânea nas cidades brasileiras, embora pareça distante e imperceptível à nossa sociedade. As experiências dos seus personagens-testemunhas são comunicadas a partir de uma linguagem que beira a oralidade, vinda das ruas para dentro do texto escrito. O relato testemunhal dos personagens-excluídos de Marcelino Freire nos permite enxergar com mais lucidez a realidade vivenciada por eles e que apontam para uma visão realista e literariamente ligada ao contemporâneo.

Um dos textos mais criativos do livro é "Linha de tiro", diálogo que se repete indefinidamente, como aquelas figuras dentro de figuras dentro de figuras, com as quais Magrite brincava com grande habilidade. A conversa é um assalto em que a mulher acha que o assaltante lhe quer vender chocolates. Serve para mostrar a infinidade de mal-entendidos que é esta nação, pois nem o assaltante se consegue fazer entender: diante da ameaça não há pânico, apenas estranhamento, como se cada um falasse uma língua diversa e nem mesmo o gestual tivesse um significado: "É um assalto! Não, obrigado, hoje não vou querer chocolates". É um texto rico para pensarmos a dificuldade histórica que o Brasil tem de elaborar um discurso constitutivo, em que todos falem um idioma comum em prol da construção de algo duradouro e consistente.

"Yamani", trata de um assunto quase ignorado na nossa prosa: o turismo sexual e a exploração de crianças prostituídas. Um turista, ao viajar pela Amazônia, deixa claro sua aversão ao Brasil e suas florestas, mas, ao mesmo tempo, narra seu desejo por uma criança indígena (prostituta), como é possível observar neste trecho:

“E os índios? O que tem os índios?
O que você achou dos índios do Brasil?
Fodam-se os índios do Brasil. Toquem fogo na floresta. Vão à merda (...) Só lembro de Yamami. Sempre gostei de crianças. Aqui é proibido. Yamami, meu tesouro perdido (...) Indiazinha típica dos seus trezes anos. As unhas pintadas, descalçadas. Tintas extintas na cara.
Coisinha de árvore (...)”
.

No conto, o estrangeiro revela seu descaso referente à natureza e ao povo brasileiro. Seu interesse pela indiazinha Yamami, de treze anos, é puramente sexual. A crítica à situação dos índios e à exploração de crianças no Brasil é direta: “Lá posso colocar Yamami no colo e ninguém me enche o saco. E ninguém fica me policiando. Governo me recriminando”.

Nota-se que o texto nos oferece a experiência vivida por um estrangeiro no Brasil, que viaja pela Amazônia e se encontra com “uma indiazinha”. O testemunho aqui se dá de duas formas: a primeira é a visão desinteressada e alienada que esse estrangeiro tem sobre o país, nada disposto a conhecer a cultura, as tradições, a floresta ou os problemas sociais da Amazônia. Por outro lado, esse mesmo personagem nos apresenta à realidade: o turismo sexual e a prostituição infantil que tomam conta das capitais do país e a marginalização dos nossos índios. A história, em princípio, surge como um simples relato de mais um turista vindo ao país, interessado nas “belezas tupiniquins”, mas que ganha uma dimensão maior ao denunciar uma situação-limite.

"Solar dos príncipes" traz um grupo de moradores de uma favela que resolve filmar o dia a dia dos moradores de um condomínio de luxo, um toque sarcástico para comentar a onda que tem sido engomadinhos com uma câmera na mão entrando nas favelas para registrar o ‘inusitado’ e ganhar prêmios internacionais em cima da miséria alheia. Aqui os papéis se invertem, mostrando a situação num avesso cheio de pequenas sutilezas. Já se inicia anunciando a que vem: “Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio”. Trata-se de um grupo de amigos do Morro do Pavão que quer filmar um apartamento e fazer uma entrevista com um morador. Quando o porteiro, também negro, impede a entrada do grupo, o narrador desabafa: “A ideia foi minha, confesso. O pessoal vive subindo no morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra as nossas panelas, merda”. O incômodo com o fato de permitir a entrada aos de fora, mas não ser recebido quando se desloca ao bairro rico, é manifestado pelo narrador. Ainda, denuncia-se a visão distorcida dos que documentam a periferia: “A gente não só ouve samba. Não só ouve bala”. Ao fim, o porteiro chama a polícia e, assim, a estreia dos quatro aspirantes cai na mesmice: novamente o filme tem tiro e sirene da viatura policial.

"Nação Zumbi", como já citado acima, é um dos pontos altos do livro conta a história de um homem preso por tentar vender o próprio rim, que afinal, era dele, podia fazer com o órgão o que lhe desse na telha. Há um diálogo com o personagem andarilho de "Cronicamente inviável", filme pouco visto e que tirante alguns exageros, poderia colocar na pauta do dia assuntos que urgem ser discutidos - e sem hipocrisia - pela nossa sociedade. O preconceito racial é retomado. O narrador tenta provar de que maneira a venda de seu rim o tiraria da situação de pobreza em que se encontra. No entanto, o tom de decepção de sua fala e a chegada dos policiais no fim da narrativa prenunciam o seu destino: “A polícia em minha porta, vindo pra cima de mim. Puta que pariu, que sufoco! De inveja, sei que vão encher meu pobre rim de soco”.

"Coração" é um texto mais longo, em que salta a veia narrativa de Freire. Seu tema é a homossexualidade.

Em “Totonha”, uma senhora discursa sobre os motivos de não querer aprender a escrever: não é mais moça, não tem importância alguma, não quer baixar a cabeça para imprimir seu nome em um pedaço de papel. Totonha argumenta: “O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?”.

Em“Trabalhadores do Brasil”, o autor refere-se aos homens e mulheres que se esforçam todos os dias em subempregos para sobreviver. As personagens desse canto recebem os nomes de alguns Orixás e de referências africanas e afro-brasileiras: Olorô-quê, Zumbi, Tição, Obatalá, Olorum, Ossonhe, Rainha Quelé, Sambongo. O narrador interpela diretamente o leitor com a pergunta ao final de cada parágrafo: “(...) tá me ouvindo bem?”. Sem nenhuma pontuação, o texto explode em uma crítica indignada aos “pré-conceitos” relacionados aos negros, mais direta no primeiro e nos últimos parágrafos: “(...) ninguém
vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?”
e “Hein seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém”.

“Esquece” define o que é violência aos olhos de um excluído social, que representa tantos outros. Também marcado pela falta de pontuação, o conto é um “desafogo” diante das notícias frequentes sobre o tema, veiculadas intensamente nos jornais e na televisão, através da lente das classes média e alta. Nesse conto, a vítima está do outro lado, quase sempre esquecida: “Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela
imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora. Esquece”
.

A visão estrangeira da personagem alemã em “Alemães vão à guerra” representa o senso comum: “Nosso dinheiro salvarria, porr exemplo, as negrrinhas do Haiti”. A personagem olha para o Haiti e para Salvador como lugares quentes e cheios de amor. Porém, é possível afirmar que a noção de “estrangeiro” ultrapassa a questão da fronteira e instala-se nas diferenças entre as classes sociais, o que aponta alguns olhares estrangeiros dentro de um país tão desigual como o Brasil.

Vaniclélia, personagem do conto homônimo, apanha do homem com quem vive e a quem chama de belzebu. Seu parâmetro de comparação são os “gringos”, que escolhem as mulheres no Calçadão de Boa Viagem: “Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara. O gringo era covarde, levava pra ser escrava. Mas valia. Menos pior que essa vida de bosta arrependida”.

No conto "Curso Superior" um jovem expõe à mãe seu medo de entrar na faculdade e não conseguir concluir o curso, por diversos motivos: porque possui deficiência nas disciplinas, tem medo do preconceito, pode engravidar a loira gostosa da turma e não conseguir nenhum tipo de emprego, porque o policial vai olhá-lo de cara feia e ele vai fazer uma besteira. Seu fim seria a prisão, sem o privilégio da cela especial. Por meio desse discurso profético, o círculo vicioso do preconceito racial e social é tratado com ironia pelo autor.

O conto “Caderno de turismo” foge um pouco da temática do livro, mas não deixa de ser polêmico: “Zé, olhe bem defronte: que horizonte você vê, que horizonte? Pensa que é fácil colocar nossos pés em Orlando?” (p.69).

“Nossa rainha” e “Meu negro de estimação” tratam, essencialmente, do embranquecimento do negro. O conflito entre o desejo da menina do morro de ser a Xuxa e a situação de pobreza em que se encontra faz com que sua mãe reflita sobre as diferenças sociais entre sua filha e a Rainha dos Baixinhos. A mídia, novamente, constrói um modelo que reforça o preconceito racial e social. A menina pode vir a ser a Rainha da Bateria, sonho mais próximo à sua realidade. Xico Sá questiona se o conto “Meu negro de estimação” não seria uma fábula a Michael Jackson. O narrador refere-se a seu negro de estimação como um homem melhor do que era: “Meu homem agora é um homem melhor. Mora nos jardins, veste calça. Causa inveja por onde passa. Meu homem não tem para ninguém, só para mim. Meu homem se chama Benjamin”. É importante lembrar que, na gravação em CD que Marcelino Freire fez de seus Contos Negreiros, há uma mudança significativa nesse conto: substitui-se “homem” por “negro”.

Créditos:

Revista Catorze, <http://revistacatorze.com.br/2009/marcelino-e-seus-contos-negreiros> | Sálvio Fernandes de Melo, Universidade Estadual de Londrina | Moacyr Godoy Moreira, mestrando em Literatura Brasileira, USP-SP | Flávia Merighi Valenciano, Mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, FFLCH-USP.