Há um olhar, de certo modo, enviesado em relação à poesia e aos poetas. Para essa mentalidade a poesia seria um escudo para impedir que o poeta en... Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
Título do artigo:

Sobre a Poesia e os Poetas

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“Ai as almas dos poetas /
Não as entende ninguém;
São almas de violetas /
Que são poetas também”
(FLORBELA ESPANCA).

Há um olhar, de certo modo, enviesado em relação à poesia e aos poetas. Para essa mentalidade a poesia seria um escudo para impedir que o poeta encare à realidade. Assim, não passaria de um indivíduo que pretere o mundo real para abraçar a fantasia. Logo, parece meio constrangedor sentir-se poeta, como se fosse um covarde com atestado de fragilidade na testa. Ou, uma espécie de eremita em pleno centro urbano, com dificuldade para vivenciar o pragmático cotidiano, por isso se utiliza da poesia como quem faz uso da droga pela implícita promessa de fuga.

Pessoalmente, uma vez ou outra, me peguei na defensiva, tentando me esquivar ou me negando a ter afinidade com a poesia. Por um lado, devido a um trauma, quando secundarista mostrei uma poesia a professora de português, e ela ressaltou que as minhas rimas eram pobres, pois terminavam em ão. A expressão “rimas pobres” fez persistente eco, por tempo indeterminado, nos meus ouvidos. Mais do que a pretensa intenção de ser poeta, tinha ali a expressão dos meus sentimentos românticos, ingênuos, verdes, e esperava um mínimo de compaixão da mestra para, de alguma maneira, contemplar aquela emoção descrita. Por outro lado, ler poesia ou tentar engendrá-la me deixava muito vulnerável, a sensação ardente ao leve toque do vento na alma descascada. Além do que, depois que conheci “Versos íntimos” do paraibano Augusto dos Anjos e “Poema em linha reta” do português Fernando Pessoa, tive a impressão de que ninguém conseguiria dizer mais nada, uma vez que esses dois tímidos e sofridos camaradas, de realidades tão distantes e de sensibilidades tão próximas, tinham, na minha compreensão, dito tudo, colocado o humano às avessas. 

Mas, apesar disso, tenho uma necessidade dizer algo de forma tal que alguém pode até chamar de poesia, mas prefiro ver apenas como um desabafo, um jeito particular de regurgitar ou devolver sapos e lagartos, retirar a corda do pescoço, respirar. Essa forma de expressão escrita, desprovida de floreio, asfixiada de mal-estar e inquietação, no final me provoca catarse que suscita a noção de compreender mais amplamente as incoerências e os paradoxos do entorno e do mundo, bem como a minha própria loucura. É como se, para visitar os porões assustadores do psiquismo, somente por meio dessa ferramenta: a poesia - mesmo que em versos sem métrica, sem rimas -, fosse possível.

O registro de uma dor que funde dentro e fora, que constitui e é constituída. O vislumbre de um perigo em eminência, uma concentração de sangue, de injustiça que pairam nos templos e catedrais, cujo espaço geográfico se insinua sem lei, em completo abandono. Medo e desamparo diante dessa impotência. Não quero esse sangue, não desejo essa dor, até porque já percorro a minha via-crúcis, mas tenho a vontade de espiar essa chaga, esses líquidos esvaídos de vidas, chegar mais perto, me lambuzar um pouco. Porém, viver essa ousadia sugere a quebra da segurança básica de uma suposta redoma, como se nunca tivesse visto a real monstruosidade do mundo completamente despida, sem nenhuma fantasia ou maquilagem. Seria um ritual de passagem, um vodu, para não mais temer o medo, amadurecer, cristalizar a coragem.

Mas, não existe garantia, talvez adentrar essa nebulosa não traga nenhum perigo para minha integridade, mas também posso ser surpreendido pela situação e tenha que pagar caro em consequência da bifurcação que toda rotina oferece. Nada que esteja, de fato, fora do lugar ou na ilegalidade, mas o enfado de trilhar os mesmos caminhos, a obediência aos avisos e as constantes recomendações para se desviar dos filetes de perigos que, sob o olhar da alerta, tornam-se abissais. Isso porque, esse território não habitual se torna imediatamente estrangeiro, como se diferente tivesse sempre um potencial danoso. Segundo Bauman (2011), o estranho desperta sentimentos confusos e ambivalentes, uma proteofobia1. Porém, por ironia do destino, todo mau jeito sofrido, como é sabido, vem do que é mais familiar ou conhecido.

Esse contato com o inusitado, por um determinado ângulo, é sublimado na função de psicoterapeuta, chega-se às margens do flagelo psicológico e emocional, aos limites das dúvidas e das inseguranças, ao inferno e ao céu do outro. Na medida em que também se rever a própria desgraça interior ou sabotagem do próprio bem-estar ou da felicidade. O psicólogo clínico parece um voyeur de almas, ele precisa desse exercício, e nisso também tem uma poesia prática, utilitária, de como lidar com a dor alheia, espiar as feridas do mundo, atenua ou esvazia as suas, bem como se fortalece em cada intervenção empática quando adentra os subterrâneos e os labirintos sombrios e tenebrosos desses sobreviventes.

Então, o poeta seria o sujeito que abraça sem pudor a impossibilidade, o lamento das perdas, do luto, está envolvido não como sujeito do “suposto saber” (expressão de LACAN), resolvido, asséptico, impermeável, mas na condição de vivente tomado pelos fragmentos das realidades real e virtual que lhe recicla e por ele são reciclados. Para Espanca (apud DAL FARRA, 2005, p.229), “Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior / Do que os homens! [...] É ter de mil desejo o esplendor [...] É ter garras e assas de condor! / É ter fome, é ter sede de Infinito! É considerar o mundo num só grito!”. O poeta se deixa sangrar, toma-se pelos sentidos, enquanto se constitui em processos de exorcismo e de se exorcizar. Mas, não se permite inserido, totalmente, em nenhum contexto de concretude, cimento armado ou coisa parecida, este que, na maioria das vezes, é, por demais, cortante para as propriedades de suas lucubrações. Enfim, o poeta precisa, para não enlouquecer, da poesia como anteparo para revisitação constante das loucuras.

Segundo Ordoñez (1994), Fernando Pessoa sempre foi solitário e a capacidade para se relacionar não era seu forte, como no poeta português o elemento esquizóide também está presente nos demais. Diria que é exatamente por isso que o poeta não quer ou não suporta a máquina cotidiana, a mecânica do corriqueiro sem pudor e escancaradamente exposta, ele torna esses lugares comuns em não-lugares ou os ver como eventos especiais para percebê-los melhor, sentir e reagir às suas observações. Ordoñez (1994, p.15) afirma que “a esquizofrenia é a doença do isolamento”, e acrescenta que Karl Jaspers se perguntava se a esquizofrenia não é a desordem mental própria do mundo moderno. Sim, sem dúvida, é. Porém, por mais que o homem moderno esquizofrênico se isole não consegue fazer brotar da sua esquizofrenia a beleza e a profundidade poética de um Pessoa e meia dúzia de outros.

O poeta é um ser diferenciado, um louco lúcido cujo alimento é a poesia que socializa com outro/s. Melhor assim, do contrário se perde e se prende no próprio universo fantasmagórico, esbarra na sua dor. Por conseguinte, se fecha completamente, pirado, falando para as paredes, atirando farpas verbais para o infinito, desafinando um lamento estéril. Uma vez eclipsado pela loucura sente-se Senhor do Saber, condição na qual fora e dentro, certamente, sem limites, agora, se confundem, e a loucura produtiva e reflexiva já não é mais objetivamente compartilhada. Para o poeta, na visão de Octavio Paz (apud ORDOÑEZ, 1994, p.20), “cada poema é uma leitura da realidade; essa leitura é uma tradução; essa tradução é uma escritura; um voltar a cifrar a realidade que se decifra. [...] escrever o poema é decifrar o universo apenas para cifrá-lo de novo”.

No entender de Jaccard  (1975), o homem da modernidade é um débil, inerme, como que castrado, e também isolado em seu exílio interior. Um esquizóide fora dos muros do hospital psiquiátrico. Essa opinião é corroborada por Lipovetsky (2005) quando ele diz que estamos no extremo do deserto, atomizado e separado de nós, e que somos incapazes de “viver” o Outro. Segundo Morin (2011), não é apenas a comunicação com o outros que está empobrecida, mas é a nossa própria presença perante nós mesmos que se dilui, em virtude de ser sempre mobilizada para outro lugar. Na verdade, “o outro, como uma arte inquieta e imprevisível, como o próprio futuro, é um mistério. E ser-para-o-outro, ir ao encontro do outro pelo tortuoso e rochoso desfiladeiro da afeição, lança luz sobre esse mistério - transforma-o num desafio” (BAUMAM, 2011, P.98).

Finalmente, o isolamento e a esquizoidia não são por si mesmos reveladores de criatividade e talento, na verdade a maioria dos esquizoides pós-modernos é apenas consumidora, predadora da natureza e processadora de futilidades. Portanto, vazia de qualquer resíduo poético.

NOTA:

  1. O termo proteofobia refere-se à apreensão despertada pela presença de fenômenos multiformes, alotrópicos, que teimosamente omitem a atribuição e enfraquecem as familiares redes classificatórias. Portanto, ao desagrado com situações em que alguém se sente perdido, confuso, impotente, ou seja, quando não sabemos como proceder em certas situações, porque as regras de conduta que definem para nós o significado de “saber como proceder” não dão conta delas (BAUMAN, 2011, p.244).

Referências

BAUMAN, Z. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.
DAL FARRA, M. L. Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
JACCARD, R. L`exil intérieur. Schizoïde et civilization. Paris: PUF, 1975.
LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005.
MORIN, E. Cultura de massas no século XX: espírito do tempo 1: neurose. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
ORDOÑEZ, A. Fernando Pessoa, um místico sem fé: uma aproximação ao pensamento heteronímico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.