RESUMO: Este texto consiste no relato do atendimento psicoterápico, de uma jovem de 22 anos, que, até então, na sua quarta tentativa, não passara no vestibular de medicina para rede pública. Trancou o segundo semestre do citado curso, numa faculdade autônoma no interior do Ceará/Ce, para se dedicar a essa empreitada. Realizava quase todos os ves Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
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Vestibular: Maratona de Conhecimentos e Emoções

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RESUMO: Este texto consiste no relato do atendimento psicoterápico, de uma jovem de 22 anos, que, até então, na sua quarta tentativa, não passara no vestibular de medicina para rede pública. Trancou o segundo semestre do citado curso, numa faculdade autônoma no interior do Ceará/Ce, para se dedicar a essa empreitada. Realizava quase todos os vestibulares em cidades próximas a João Pessoa/Pb, local onde reside. Apesar de estudiosa e responsável, questões emocionais, etc., a impediam de desempenho satisfatório nas provas. Com ajuda terapêutica, em menos de três messes, conseguiu rever subjetividades, posturas didaticamente inadequadas e também elaborar algumas pendências afetivas. Concorreu a uma das vagas mais disputadas para medicina, numa universidade estadual de um Estado vizinho, e foi aprovada.

DESCRITORES: Vestibular. Emoção. Distresse.

1) INTRODUÇÃO

“Não basta ensinar aos homens uma especialidade (...) È necessário que adquiram um sentimento” (A. Einstein).

Nina (nome fictício) - moça morena, 22 anos de idade, biótipo pícnico, filha do meio entre uma irmã e um irmão caçula, classe média -, me procurou, no consultório particular, para algumas seções de psicoterapia. Motivo: não passara, até então, na sua quarta tentativa de cursar medicina em universidade do governo. Fazia vestibular, quase simultaneamente, em todas as cidades próximas a João Pessoa/Pb, onde mora como os pais. Para realizar esse objetivo trancou o segundo semestre de medicina numa faculdade autônoma no interior cearense. Por este demandar gastos com mensalidade e manutenção, além de tornar difícil o contato com a família. Seu desejo era realizar este curso gratuito e, pelo menos, a duas ou três horas de distância de casa.
Embora estivesse, como sempre, preocupada com aprovação, sua queixa parecia confusa, não sabia o que obter na terapia. Talvez, o relax conseguido, quando da sua segunda reprovação, em algumas seções com uma psicóloga, cuja sala de atendimento ela gostava porque era decorada como sonhara ser seu quarto de dormir. Percebi o quanto Nina tinha se angustiado durante esses quatro anos. Desse modo, minha ajuda consistiria em ir além das técnicas de relaxamento. Focalizei este aspecto, e ela concordou que as seções seriam centradas nesse intento. Ou seja, na sua aprovação em medicina. Toda dinâmica de como se desenvolveu esse processo será apresentado a seguir. Entretanto, sem obedecer rigorosamente à ordem como os fatos se desencadearam, uma vez que os encontros não foram gravados, mas apenas anotados os pontos mais relevantes para a análise da casuística.

2) DINÂMICA DAS SESSÕES PSICOTERÁPICAS DE NINA

Nina inicia sua sessão dizendo que, algumas vezes, devido ao cansaço, embroma, foge do compromisso de estudar, a exemplo de ficar muito tempo na Internet. O que contraria sua intenção de passar no vestibular. Sempre obtém os primeiros lugares nos simulados dos cursinhos, ensina os colegas, estes são aprovados, e ela fica sem entender por quê não consegue se classificar. Renunciou a tantas coisas, festas, namoro, ginástica, etc., deixou de cuidar de si e, por isso mesmo, está gorda. Preocupa-se também com o estresse que essas situações causam à família, principalmente em seu pai. Até porque ele tem como hábito discutir, comentar as questões, conferir gabaritos, etc., e a companhá-la nas viagens e hospedagens em hotéis, onde se realizam as provas. Para Nina é sempre decepcionante confirmar que não obteve resultado positivo, mesmo em conteúdos ou temas que demostrava dominar ou ter algum conhecimento.

Depois, ela comenta que a irmã se afina com o pai, que eles parecem se entender melhor entre si do que com ela. Atribui tal sintonia à mais idade da irmã, devido ao maior tempo de convivência, uma vez que a mesma nasceu primeiro. Contudo, salienta que sendo sua mana da área da saúde (enfermeira) e tão querida, mas não é médica, não realizou o sonho do seu pai (engenheiro), de ter um(a) filho(a) formado(a) em medicina. E Nina tem certeza do quanto isso é motivo de orgulho para ele. Sobre o seu dia a dia no cursinho, diz que fica com dúvidas na sala de aula, por conta da sua timidez, e que muitas questões que julga elementares, que já “caíram” tantas vezes, ela as descartava.

Esta paciente demonstrava, mesmo bem falante, uma certa resistência, se defendia diante de qualquer detalhe que, por ventura, apontasse suas prováveis responsabilidades pelos fatos. Mantinha a guarda sempre em alerta. Ela apresentava: “a síndrome da boa filha”. Assim, qualquer colocação que se opunha a essa construção seria doloroso de aceitar. Manter-se nesse papel implica numa sobre carga de afazeres e disponibilidades que engolfavam seus os limites. Ela se mostrava, apesar persistente, saturada dessas maratonas. Sua gana de economizar, de reduzir ao mínimo possível as despesas da família para consigo - embora o pai não reclamasse e até se desfizeram de um patrimônio para custear os estudos dos filhos -, a deixava desconfortável.

Nina entrara na sala com um copo d’água, e assim se repetiu em outras seções, e, entre um gole e outro, atenta, escutou dizer-lhe que ela não passava devido ao seu “convencimento”. Que iria “instalar uma insegurança” porque: se por um lado, ela era segura nos simulados, onde isso não traria consequências; por outro, se deixava tomar pelo nervosismo, em momentos que carecia de autocontrole da emotividade, das fantasias, etc.. Coloquei para Nina que ela cometia o que chamo de pecados ou falhas operacionais. Uma vez que não tirava as dúvidas com os professores, nem buscava o plantão para esse fim, e, muito menos, pesquisava em casa! Desse modo abria um abismo, a possibilidade para o insucesso. E, ao invés de julgar um conteúdo banal, procurasse valorizá-lo, porque, exatamente, este, podia constar numa prova. Enfim, de considerar todo e qualquer assunto com seu potencial de importância. Acrescentei ainda que ela sentia ciúme da irmã, assim sendo, passar em medicina, era ficar à frente e acima desta. Ou seja, de ganhar, em definitivo, a simpatia do pai, sua atenção como se fosse filha única. No entender de BOHOSLAVSKY (1977: 73), “As vocações expressam responsabilidades do ego diante de ‘chamadas interiores’, chamadas de objetos internos prejudicados, que pedem, reclamam, exigem, impõem, sugerem etc, ser reparados pelo ego”. Salientei que é comum ao filho do meio o conhecido “sanduíche”, esse tipo de sentimento.

Em sua peculiar sinceridade, Nina reagiu energicamente: “Isso é jargão da psicologia!”. Procurei explicar que tudo isso se dava em nível do inconsciente. Que esse convencimento tinha a ver com o fato dela ensinar aos colegas e em passar nas bizuradas, como se isso fosse o suficiente. Ou seja, já provara, para si e para os outros a sua capacidade, e, assim, seu objetivo se consideraria como “realizado”. Nessa linha de pensamento, a não aprovação poderia ser também a expressão de afetos ambivalentes que bloqueavam o fluxo dos seus conhecimentos. Reforcei mais uma vez que a inveja, a disputa entre irmãos, apesar do amor fraterno ou em decorrência dele, é natural, e que ocorre com frequência. Sugeri que ela refletisse sobre os sentimentos do seu pai, se existia uma diferenciação de tratamento que a levava se sentir preterida? A questionei até que ponto passar em medicina se reduzia a conquista do amor paterno. Será que a medicina, independente da vontade de seu pai, era realmente o curso que desejava seguir? Ela respondeu que se identificava com essa área, mas que em primeiro lugar estava atender a esse desejo do seu pai.

Na sessão seguinte, Nina inicia dizendo ter comentado com os familiares que iria desistir da terapia, porque saia dali pior do que entrava. E exclamou: “Olha que atrevimento! O psicólogo disse que eu sou convencida. Será que ele pensa que eu não gosto de estudar ou que sou relapsa nos estudos?”. Foi aconselhada pela família a continuar, a ter calma porque tinham boa referência a meu respeito. Na realidade, seu atendimento havia se desviado, um pouco, da estrutura habitual de imparcialidade. Isso de devia, em parte, à própria dificuldade de definir a modalidade de assistência, se Orientação Vocacional ou Psicoterápica. Depois, havia uma urgência, estávamos na véspera de mais um vestibular, e eu, na minha contratransferência, também tinha expectativa, mesmo dentro da limitação de tempo, que Nina fosse aprovada. Embora se permitisse buscar ajuda psicológica, não era fácil para ela, isto porque tinha rusgas com profissional dessa área. Um tio seu, por parte de mãe, a incomodava, pois a instigava a desistir de medicina. Como se não bastasse, ainda implicava com a criação do seu cachorrinho, porque tem problema de refluxo. Indaga: mesmo sendo conhecido na cidade onde reside, ele deve ser frustrado por ter desistido de ser médico, isso não pode acontecer? Se diz chocada com fato de um psicólogo (cabe lembrar que, em geral, essa cobrança se deve à dificuldade de desvincular o lado técnico da pessoa), não sensibilidade para notar o quanto aquele bichinho é estimado, que ela o trata como humano. Na verdade, sua fonte garantida, e quase única, de satisfação afetiva.

Nina não imaginava o quanto eu estava sensível a sua renúncia. Esta palavra, embora assertiva, não parecia suficiente para dar conta do desespero, principalmente interno, daquela pessoa diante de mim. Embora tentasse não transparecer, o sorriso branco e fácil não conseguia esconder sua dor. A renúncia era visível no corpo que ela abandonara, largara para se dedicar aos estudos. Sua renúncia e persistência me tocaram. Assim sendo, lhe disse que não tinha dúvida alguma dos seus esforços e de sua capacidade. Enfim, que aquela “briga” também era minha. Nina pareceu mais aliviada, compreendida. Tive a impressão que em resposta a essa minha fala, passei a ser mais ouvido. O seu exacerbado senso de poupar, em não dar despesa a família, me levou a pensar que tinha relação com sua auto-estima. Ela não aceitou os honorários preestabelecidos, aproveitei a situação para negociar o preço da sessão atrelado ao seu próprio valor pessoal. Após uma reflexão, fez uma proposta de investimento que considerei aceitável.

3) INTERESSE PROFISSIONAL E AS DIFICULDADES EMOCIONAIS

A intenção de Nina conquistar a atenção paterna, me fez verificar até onde a medicina tinha a ver com a sua vocação. Então, apliquei o Inventário de Interesses (A. L. Angelini e H. R. C. Angelini), através do qual pude confirmar seus interesses pelas áreas das Ciências Biológicas (inclui medicina), seguida de Serviços Assistências/Sociais e Ciências Físicas. Trabalhamos sua timidez em relação à sala de aula. Na vivência, ela se remeteu à imagem de se encontrar numa arena sob os olhares críticos e perversos da platéia. Mas, aceitava qualquer colocação, espontânea ou boba, dos colegas. Devido à sua baixa auto-estima e, como consequência a seu alto nível de exigência, ela projetava seu “olhar” de intolerância nos outros. Na outra sessão me falou que já estava ousando levantar o braço para pedir explicações. Bem humorada lembrou um comentário do irmão: “Que esta menina fique mais tempo nesse psicólogo, para ver se ele também ajeita sua cabeça complicada!”.

Nina revelou outras maneiras, que absorviam suas energias. Ela assumia vários papeis: dona de casa, governanta, “mãe” de seus pais e dos seus irmãos. Preocupava-se com a integridade física do pai, na volta para casa, depois de alguns pileques, e dos irmãos nas saídas noturnas. Para deixá-la ansiosa bastava um pequeno atraso. Nos finais de semana se apossava da cozinha, em substituição à secretária. Ou seja, esse quadro tem como base sua fuga dos estudos, assim como o delineamento da moldura da “boa filha”. Nesse sentido, MIRA Y LÓPEZ (1992: 25), diz: “quando o Ser necessita de algo vital, busca-o e não o encontra, sente a frustração de seus esforços e esgota sua energia, multiplicando-os”. Quando Nina não tinha esses esforços e cuidados reconhecidos pelos pais, e que estes a tratavam igual aos seus irmãos que ligam para arrumação de casa, etc., ficava ressentida. A orientei para abandonar essa compulsão serviçal e administrativa, e aceitar unicamente suas tarefas de filha e estudante. Depois, descontraída, ela comentou que uma parenta perguntara o que o psicólogo estava fazendo para ela ficar rebelde.

As questões emocionais e maneiras inadequadas de Nina se conduzir, a impedia de alcançar seu objetivo, uma vez que a deixavam esgotada. Ela tinha a “marcação serrada” do pai. Isso também aumentava o seu compromisso moral de corresponder a toda essa dedicação. Ela se dizia em melhor condição do que alguns de seus colegas, cujos pais exigiam que seguissem medicina. Disse-lhe que ambos os pais exerciam pressão, e que talvez a pressão sutil tivesse um efeito mais angustiante, pelo não dito, porém manifesta. Nesse sentido, BOHOSLAVSKY (1977) diz que os valores do grupo familiar constituem bases significativas na orientação do sujeito, seja como referência positiva ou negativa. Sugeri que ela procurasse, aos poucos, se desprender dessa disposição paterna, que procurasse ficar mais independente.

4) AS REPROVAÇÕES AFETARAM AS CRENÇAS DE NINA EM DEUS E EM SI MESMA

As constantes frustrações fizeram com que Nina perdesse a fé em Deus, assim como nela própria. Na compreensão de LOWEN (1983: 137), “quando ocorre uma perda de fé, as pessoas parecem perder também o desejo e o impulso de se lançarem na vida, de procurarem suas extensões, e lutar”. De maneira inconsciente isso ocorria com Nina. Por vezes, indisposta, somente para não desagradar à mãe, bancária e fervorosa religiosa, a seguia nas orações doméstica. Porém, se percebia numa contradição, se pegava cantarolando músicas cristãs nos dias de prova. Chamei sua atenção para o fato de que talvez fosse esse seu jeito de orar, de entrar em contato com o divino. Portanto, era mais válido do que participar de rituais para os quais se sentia ausente.

Em cada novo vestibular, os fantasmas voltavam a habitar o imaginário de Nina, indagações dos tipos: Será mais um vestibular que não passo! Será que é dessa vez que vou dar alegria ao meu pai! Os amigos e conhecidos acham que não tenho capacidade, etc.! Isto é, o vestibular significava tudo, uma guerra. etc., cujo objetivo era atender as expectivas dos outros, mostrar para o mundo; menos um momento de testagem, onde, com uma certa tranquilidade, ela pudesse demonstrar esse saber acumulado. Na ótica de GOLEMAN (1995: 69), “quando as emoções são sufocadas, geram embotamento e frieza; quando escapam ao nosso controle, extremadas e remitentes, tornam-se patológicas, tal como ocorre na depressão paralisante, na ansiedade que aniquila ...”. O idealismo, sem princípio de realidade para sua sustentação leva à desilusão, da mesma forma que qualquer consistência norteada pelo derrotismo trava sua realização. Os sucessivos fracassos fizeram Nina desacreditar em Deus e em si mesma. Desenvolveu um pessimismo, uma perspectiva negativa. Segundo MIRA Y LÓPEZ (1992:47), “o pessimista é um indivíduo que exibe seu medo camuflado”. Assim sendo, tentei, através de técnica, reformular essas perspectivas de Nina, fazendo vir à tona seus medos e receios, para torná-la positivada. Pedi para ela que esgotasse uma lista deles e depois ordenasse os dez mais preocupantes. Cada qual foi correlacionado a uma situação específica e presentificado à sua emoção.

Mas, quando tudo, dadas as condições, parecia trabalhado, descubro outros pecados. Nina, enquanto realiza suas provas, calcula o número de erros e acertos. Além do que, a partir de uma questão que tenha dificuldade, ela generaliza, acha que não consegue acertar mais nada. Destaquei que agir assim a deixava tensa, e que afetava a sua capacidade de concentração e, como consequência, de raciocínio e melhor elaboração dos pensamentos. Que repensasse esses procedimentos, pois os mesmos implicavam na perda de tempo e energia mental. Em vista disso, seria mais sensato “pular” as questões mais complexas, deixando-as para resolver no final. Instrui-a para fazer exercício de relaxamento, pontuando a importância da respiração nesses momentos de tensão, e que mantivesse os pés bem apoiados no chão (grounding)1.

Estávamos na segunda quinzena de novembro, e o vestibular seria no começo de dezembro. Assim combinamos, pelo menos, uma sessão extra, antes. Nesse ínterim, ela fez o vestibular numa capital próxima. Este era um dos mais difíceis. A estimulei para que tivesse uma outra abordagem com a prova: ao invés visualizá-la como monstro indomável, que a visse como um instrumento a seu favor, no qual devia, dentro do possível, tentar depositar seus saberes. Para LEVISKY (1992), a modulação adequada do nível de ansiedade favorece o pensar, o perceber e aprender os significados com mais amplitude. Quando da realização deste vestibular, ela considerou ter cometido bastante acertos, temia, apenas, pela parte subjetiva. Pincei que, de qualquer forma, o resultado já estava sendo satisfatório porque, pelo que me parecia, ela havia resgatado sua autoconfiança e estima. O resultado estaria na Internet antes do jornal. Nesse dia, seu pai, de tanta ansiedade, não conseguiu trabalhar, voltou depois de alegar indisposição física. Prostrada diante do computador, toda família aguardava a tão esperada confirmação. Foi aquela gritaria, choros, abraços. Nina passara em 13o lugar, numa concorrência de 33 candidatos para 1 vaga. Ela me ligou feliz.

Na sessão, reclamou da minha falta de euforia. Justifiquei que se devia ao meu estado físico, em decorrência de um breve descanso entre os expedientes. Ela também criticou a reação da família, viu naquela comemoração entusiástica uma certa histeria, como se ela tivesse recebido um órgão para implante. Precisava de tanto? Comentei que não tinha nada de atípico dos seus familiares se comportarem assim, estavam atualizando, colocando o estresse contido desses anos todos para fora, extravasando em alegria. A sua analogia de doação de órgão era perfeita, mas distonante pelo fato dela própria não se envolver mais ou em igual intensidade nessa folia. Ela falou que tinha a sensação de estranheza, como se aquilo não estivesse acontecendo com ela. Sentia que Deus tinha sido fiel com ela, mas não o inverso. Expliquei que isto se devia as sucessivas frustrações que a fizeram acreditar que sua aprovação não mais seria realizável. Comparei essas situações com abortos, e ela completou: “nos quais, logo após eu engravidava novamente”. Ou seja, ela não elaborava essas perdas, porque já se via obrigada a estudar para o vestibular seguinte. Segundo REY (2000: 51), “o distresse se define pelas emoções que surgem quando o sujeito não pode expressá-las no espaço dinâmico que aparece como consequência de uma necessidade, a qual, geralmente, não é consciente para ele, o que complexifica ainda mais o problema”.

Pedi a Nina que me citasse um objeto do qual ela gostava e que lhe fosse intimo (objeto transicional). Ela falou de um ursinho de pelúcia, pedi-lhe que projetasse esse urso numa das pequenas almofadas da sala. Instrui-a de que aquele “urso” representaria o seu “troféu” (aprovação do vestibular). Estimulei-a recebê-lo. Depois desse recebimento, levemente emocionada, ela parecia ter introjetado a ideia da vitória à qual fazia jus. Mas, ainda tinha um outro desejo que Nina queria realizar, ou seja, de fechar sua gestalt de vestibulares passando também no da cidade. Isto é, encerrar definitivamente esse sofrimento, de preferência com a queima de todo material a eles relacionado. Fez uma boa prova, mas, devido a uma fraude, a segunda parte foi anulada. As suas férias tiveram de ser adiadas. Ela voltou a considerar Deus como injusto, em protesto ao pai que dizia que Deus sabe o que faz. Mesmo assim, Nina resolveu comemorar sua aprovação, com um churrasco, na piscina de sua casa, para o qual exigiu minha presença.

5) CONSIDERAÇÕES FINAIS

O jovem, de forma direta ou velada, sofre pressão da família para seguir determinadas carreiras profissionais. Principalmente as consagradas, aquelas que atribuem oferecer mais chances de estabilidade financeira. No caso de Nina, pelo menos o querer da família, em especial do pai, vinha ao encontro do seu desejo. Porém, ela tinha dificuldade de aceitar e expressar seus sentimentos de frustração em cada reprovação, não havia espaço psicológico para isso ou ela não lhe atribuía importância. Apesar de uma série de fracassos, ela continuou obstinada no seu propósito de passar em medicina em escola pública. Mas, devido a posturas pouco práticas, ao distresse e outras questões subjetivas (conflito do amor paterno, necessidade de apoio do pai em oposição à sua necessidade de independência) não conseguia perceber que ela própria boicotava seu processo. As nossas seções foram além da busca de relaxação, mas de ajudá-la a compreender o que dificultava a realização desse objetivo. Devido a um seu forte traço pragmático, me pareceu que, com todo risco que isso poderia suscitar, eu teria de ser contundente, para quebrar sua resistência inicial. Caso contrário, como ela estava fixada nas perdas, poderia, em nível do inconsciente, procurar me arrastar para esse seu caos que se perpetuava. O que, provavelmente, confirmaria ressentimento do tipo: “não tem jeito, sou mesmo um fracasso e ninguém é capaz de me ajudar”. Ao ser compreendida, apoiada, ela passou, de fato, a se sentir um pouco relaxada. No churrasco, após agradecer à sua família pelo apoio, etc., ela me fez a seguinte homenagem: “Mas, existe um agradecimento que eu não posso deixar de fazer, ao meu psicólogo que faz parte dessa jornada há pouco mais de 3 meses e fez dessa briga uma briga dele. Valdeci, sem a sua ajuda eu não teria vencido!” (Nina, 12/2002). Fiquei deveras comovido com tais palavras, uma vez que deixa explicita a realização assertiva de um trabalho. Finalmente, passar em medicina, embora tenha uma conotação reparadora para NINA, condiz com a sua vocação. Mas, isso não seria possível não fosse a sua persistência, a sua conduta básica de estudante responsável e estudiosa, além da humildade em buscar ajuda (quando indagada, nunca negou que fazia terapia). Sem estas pré-condições, certamente, a minha ajuda não teria se efetivado.

Livro do Autor Valdeci Golançalves

6) REFERÊNCIAS

BOHOSLAVSKY, R - Orientação Vocacional: a estratégia clínica. Martins Fontes: São Paulo, 1977.
GOLEMAN, Daniel – Inteligência Emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. 69 ed. Trad. Marcos Santarrita. Objetiva: Rio de Janeiro,1995.
LEVISKY, D. Léo - Algumas Contribuições da Psicanálise à Psicopedagogia. In: Scoz, B. J. Lima (Org) et al. Psicopedagogia: contextualização, formação e atuação profissional. Artes Médica: Porto alegre, 1992.
LOWEN, Alexander - O Corpo em Depressão: as bases biológicas da fé e da realidade. Trad. George Schlesinger. Summus: São Paulo, 1983.
LOWEN, Alexander & LOWEN, Leslie - Exercícios de Bioenergética: o caminho para uma saúde vibrante. 2 ed. Trad. Vera L. M e Suzana D. de castro. Ágora: São Paulo, 1985.
MIRA Y LÓPES, Emilio - Quatro Gigantes da Alma: o medo, a ira, o amor, o dever. 15 ed. Trad. Cláudio de A. Lima. José Olympio: Rio de Janeiro, 1992.
REY, Fernando González - O Emocional na Constituição da Subjetividade. In: Lane, S. T. M & Araújo, Yara (Orgs) et al. Arqueologia das Emoções. Vozes: Petrópolis, 2000.