[Érico Veríssimo]
Narrado em terceira pessoa, a história, situada numa
cidadezinha interiorana chamada Jacarecanga passiva e
ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem
primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo, retrata
as lembranças do General Chicuta; recordações dum
tempo bom que passou. Na casa da neta, último reduto
do general Chicuto, passa as horas sozinho, esperando
a morte. Tudo mais são recordações patifes! - dum -
mundo de homens diferentes dos de hoje. -
Canalhas! Levado pela ilusão de vida que a luz traz, o
general entreabre os olhos e devaneia... Noutro tempo
todos vinham pedir a bênção ao General Chicuta,
intendente municipal e chefe político... A oposição
comia fogo com ele... Ele mandava e desmandava.
Elegia sempre os seus candidatos: derrubava urnas,
anulava eleições.
Conforme a sua conveniência,
condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar
uma sova num promotor público que não lhe
obedeceu a ordem de ser brando na acusação. Noutra
ocasião, correu a relho da cidade um juiz que teve o
caradurismo de assumir ares de integridade e de
opor resistência a uma ordem sua.
O general se lembra
do dia em que um artigo desaforado apareceu na Voz de
Jacarecanga . Sem assinatura, dizia assim. A hiena
sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários
de 93, agora tripudia sobre a nossa mísera cidade
desgraçada. O general entende ser com ele, não havia
dúvida (corria por todo o Estado a sua fama de
degolador.) Ele fica furioso, quase estourou de raiva.
Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o
revólver.
Passado o primeiro impacto, desconfiou de quem
pudesse ter vindo tal artigo: Botou a farda de general e
dirigiu-se a I ntendência. Mandou chamar o
Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio.
Estava pálido. Era atrevido, mas covarde entrou de chapéu na mão, tremendo. O general manda Mendanha
sentar, em seguida picou a página em pedacinhos,
amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca
do outro, ordenando que comece. Mendanha suplica
com o olhar, ao passo que o general encostava-lhe o
revólver no peito e rosnava com raiva.
Para o general, a
ordem é Inimigo não se poupa. Ferro neles! Os
devaneios do general o levam a 93... Foi lindo. O Rio
Grande inteiro cheirava a sangue. Quando do ataque
aos inimigos, não ficou nenhum prisioneiro vivo para
contar dos outros. Só os corvos voavam sobre o
acampamento de cadáveres.
Entre os destroços, o
general encontrou conhecidos, antigos camaradas.
Teve um leve estremecimento, mas logo a frase veio a
mente: inimigos não se pouca. Não remorso. Agora, o
general moribundo está nas mãos de Pentronilho, a quem
ele chama de negro safado! Petronilho se oferecera para
cuidar do velho, sabia que seu pai havia sido morto pelo
general: Quis esbofeteá- lo. O mulato reagiu, disselhe
desaforos, saiu altivo.
No outro dia... Apesar de
menino, Petronilho entendeu tudo e pensou na vingança,
mas com o correr do tempo, esqueceu. Como
enfermeiro do general, goza, provoca, desrespeita. E
fica rindo. Ao pedido de água, Petronilho traz suco de
laranja. O velho estribuça desesperado: - Eu disse água!
Petronilho encolhe os ombros e responde: - Mas eu digo
suco de laranja.
Finalmente, o general se entrega.
Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com
gozo a esta agonia. Fizera tudo de propósito. Pediu
apenas casa, comida e roupa, para cuidar do general.
Diante do bisneto, o general contempla-o com
tristeza e se perde em divagações... Num mundo de
maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos
Campolargos!
De repente, a criança entra correndo: -
Vovô! Vovô! Nas mãos, uma lagartixa verde se retorce,
manchada de sangue: - Degolei a lagartixa, vovô. O
general se assusta, perde a voz, no choque da
surpresa. Depois murmura, comovido: - Seu patife!
Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem.
Inimigo não se poupa. Seu patife! Feliz, afaga a
cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos
olhos de sáurio.
Érico Veríssimo (1905-1975)
Nasceu em Cruz Alta (RS). Aos dezessete anos
produziu seus textos iniciais. Em 1931, já em Porto Alegre,
trabalhou na Revista do Globo. Em 1932, saiu o seu
primeiro livro, Fantoches (contos) viajou em 1953 para os
Estados Unidos, onde dirigiu o Departamento de Assuntos
Culturais Pan-Americanos. Dono de uma extensa e
premiada obra, publicada em diversos países.